Protocolado nº 50.045/08 – art. 28 do CPP

Inquérito policial nº 1.235/07 – 1ª Vara Criminal da Comarca de Praia Grande

 

 

 

 

 

 

 

 

                                      Cuida-se de processo criminal instaurado em face de (...), imputando-lhe lesão corporal dolosa leve praticado no âmbito das relações domésticas (CP, art. 129, §9º) e contravenção penal de vias de fato agravada pela violência doméstica (LCP, art. 21, c.c. art. 61, inc. II, f, última figura).

 

                                      Ao oferecer a denúncia, a competente Promotora de Justiça, Dra. (...), requereu a vinda de folha de antecedentes atualizada e certidões criminais para verificar o cabimento da suspensão condicional do processo (fls. 17).

 

                                      A i. representante do MINISTÉRIO PÚBLICO que passou a atuar no feito, Dra. (...), recusou-se a formular a proposta de “sursis” processual, em virtude do disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/06 (fls. 25).

 

                                      O MM. Juiz, discordando da postura ministerial, remeteu os autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, por aplicação analógica do art. 28 do CPP (fls. 26/27).

 

                                      É o relatório.

 

                                      A questão central a ser analisada consiste na vigência do art. 41 da Lei n. 11.340/06, o qual veda a aplicação da Lei n. 9.099/95 a fatos alcançados pela “Lei Maria da Penha”.

 

                                      Esse o teor do citado dispositivo legal: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

 

                                     Nada há de inconstitucional no texto de Lei supra transcrito.

 

                                      O legislador ordinário possui plenos poderes para, diante de situações que lhe pareçam graves, afastar a incidência dos dispositivos penais e processuais da Lei dos Juizados Especiais.

 

                                      Do art. 98, inc. I, da CF extrai-se que os “juizados especiais” possuem competência para “a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau” (grifo nosso).

 

                                      O constituinte não definiu, como se nota, o alcance da expressão “infrações penais de menor potencial ofensivo”. Delegou esta tarefa, como era de se esperar, ao legislador infraconstitucional.

 

                                      A definição adveio, como é sabido, com a Lei n. 9.099/95, posteriormente alterada pela Lei n. 11.313/06. Adotou-se um critério objetivo, mensurado em função da natureza da infração penal (crime ou contravenção) e da quantidade da pena (delitos cuja pena máxima não exceda dois anos).

 

                                      O legislador preencheu a moldura do Texto Maior dentro dos limites de sua competência legislativa. Não possuía, como não possui, carta branca para tornar qualquer fato infração de menor potencial ofensivo. Não poderia, à toda evidência, estabelecer que o tráfico de drogas, o terrorismo, a tortura, o racismo, a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional ou o regime democrático, entre outros, se enquadram neste conceito, pois violaria texto expresso da Constituição (v. art. 5º, incs. XLII a XLIV).

 

                                      Não poderia, em outro extremo, deixar de incluir na definição infrações de reduzida ofensividade, como as contravenções penais.

 

                                      Respeitadas algumas arestas, portanto, o legislador ordinário pode dar ao conceito de infrações de menor potencial ofensivo o alcance que melhor julgar.

 

                                      Resta saber, agora, se os fatos tratados na Lei n. 11.340/06, que cuida dos “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil” (art. 1º da Lei) poderiam ter sido validamente retirados da esfera de abrangência da Lei n. 9.099/95.

 

                                      A resposta nos parece afirmativa.

 

                                      De há muito se reconhece a gravidade de comportamentos ligados à violência doméstica e familiar contra a mulher. Durante muitos anos tais fatos foram subsumidos à Lei dos Juizados Especiais com desastrosas conseqüências para as vítimas do crime.

 

                                      Deveras, mulheres eram (e são) covardemente agredidas no âmbito de seu lar e, por temor ou vergonha, não comunicavam o fato às autoridades. Das poucas que se decidiam a fazê-lo, muitas voltavam atrás e se retratavam, seja por verificarem que nada se fazia para protegê-las ou por terem sido novamente ameaçadas ou agredidas pelo agente. Daí a razão de ser do art. 16 (que estabelece a necessidade de confirmação em juízo da retratação da representação nos crimes de ação penal pública a ela condicionada) e das medidas protetivas dos arts. 22 a 24 da Lei.

 

                                      Nos poucos casos em que o fato era comunicado à Polícia e a ofendida não recuava em sua atitude, aplicava-se a Lei n. 9.099/95 e, sendo o ofensor primário e de bons antecedentes, recebia uma proposta de transação penal, muitas vezes resumida ao pagamento de valores em dinheiro a entidades ou à entrega de cestas básicas. Ou seja, o autor do fato desembolsava uma quantia em dinheiro e se via livre da acusação, retornando ao lar para conviver com a ofendida. Por este motivo é que não se permitem “aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa” (art. 17 da Lei).

 

                                      Pois bem. O art. 41 da Lei, objeto central da discussão trazida neste processo, coloca-se na mesma linha de Política Criminal dos dispositivos acima mencionados, consistente em tratar com severidade infrações relacionadas com violência doméstica ou familiar contra a mulher.

 

                                      Parece-nos, aliás, que agiu bem o legislador. Essa atitude coaduna-se com a moderna concepção do princípio da proporcionalidade.

 

                                      Em sua concepção originária, a proporcionalidade fora concebida como limite ao poder estatal em face da esfera individual dos particulares; tratava-se de estabelecer uma relação de equilíbrio entre o “meio” e o “fim”, ou seja, entre o objetivo que a norma procurava alcançar e os meios dos quais ela se valia.

 

                                      Sua origem normativa repousa na Carta Magna de 1215, nos itens 20 e 21, quando dizia que: “For a trivial offence, a free man shall be fined only in proportion to the degree of his offence...”; “Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to the gravity of their offence”.

 

                                      Montesquieu e Beccaria também desenvolveram o conceito de proporcionalidade, o último, como é cediço, o fez no âmbito do Direito Penal.

 

                                      A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, declara que: “a lei não deve estabelecer outras penas que não as estrita e evidentemente necessárias” (art. 8º).

 

                                      A evolução da proporcionalidade deve-se muito à contribuição de países ocidentais no pós-guerra, referentemente à vedação de arbitrariedade.

 

                                     Mais recentemente, todavia, se tem admitido outra faceta do princípio: a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), cuja dignidade constitucional foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional da Alemanha.

 

                                      A proibição de proteção deficiente deve ser um “recurso auxiliar” para determinação da medida do dever de prestação legislativa, estabelecendo-se um padrão mínimo das medidas estatais do qual não se pode abrir mão, sob pena de afronta à Constituição. Nesse sentido, a obra de LUCIANO FELDENS, intitulada “A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais” (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005).

 

                                      Diante do que se expôs, pode-se concluir que o rigor imprimido pela Lei n. 11.340/06, a qual, entre outras disposições, afastou do alcance das infrações penais ligadas à violência doméstica ou familiar contra a mulher os dispositivos da Lei n. 9.099/95, afina-se com o princípio da proporcionalidade, pois visa a evitar a proteção (material e processual) deficiente à ofendida que vigorava até então.

 

                                      GUILHERME SOUZA NUCCI, em sua obra Leis Penais e Processuais Penais Comentadas (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2a ed.) chega a semelhante conclusão:

 

“…o art. 41, da Lei n. 11.340/2006, pode estipular outra exceção, agora para restringir o alcance da Lei n. 9.099/95. Na realidade, com outras palavras, firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não são de menor potencial ofensivo, pouco importando o quantum da pena, motivo pelo qual não se submetem ao disposto na Lei n. 9.099/95, afastando, inclusive, o benefício da suspensão condicional do processo, previsto no art. 89 da referida Lei do JECRIM. Embora severa, a disposição do art. 41, em comento, é constitucional” (p. 1.061; grifo nosso).

 

                                      Deve-se ponderar, por derradeiro, que o argumento invocado pelo d. magistrado, no sentido de que a inconstitucionalidade residiria na outorga de tratamento jurídico diferenciado por conta do gênero, também não pode prevalecer, com a devida vênia.

 

                                      Como destaca MARIA BERENICE DIAS, “Como tudo o que é novo gera resistência, há quem sustente a inconstitucionalidade tanto da Lei Maria da Penha como de um punhado de seus dispositivos na vã tentativa de impedir sua vigência ou limitar sua eficácia” (A Lei Maria da Penha na Justiça, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 55).

 

                                      Acrescenta a citada autora que:

 

“Leis voltadas a parcelas da população merecedoras de especial proteção procuram igualar quem é desigual, o que nem de longe infringe o princípio isonômico. (...). Aliás, é exatamente para pôr em prática o princípio constitucional da igualdade substancial, que se impõe sejam tratados desigualmente os desiguais. Para as diferenciações normativas serem consideradas não discriminatórias, é indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável. E justificativas não faltam para que as mulheres recebam atenção diferenciada...” (p. 55-56).

 

                                      De fato, como pondera CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO em sua clássica obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade (São Paulo, Malheiros, 3ª ed., 10ª tir.):

 

“Supõe-se, habitualmente, que o agravo à isonomia radica-se na escolha, pela lei, de certos fatores diferenciais existentes nas pessoas, mas que não poderiam ter sido eleitos como matrizes do discrímen. Isto é, acredita-se que determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem escolhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação, pena de se porem às testilhas com a regra da igualdade.

Assim, imagina-se que as pessoas não podem ser legalmente desequiparadas em razão da raça, ou do sexo (...).

Então, percebe-se, o próprio ditame constitucional que embarga a desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo regilioso e convicções políticas, nada mais faz do que colocar em evidência certos traços que não podem, por razões preconceituosas mais comuns em certa época ou meio, ser tomados gratuitamente como ratio fundamentadora de discrímen.” (p. 15, 17-18).

 

                                      O consagrado jurista, então, propugna três critérios para se avaliar se o elemento discriminatório contido na Lei se coaduna com a Constituição Federal: 1) a identificação do discrímen; 2) a correlação lógica entre este e a disparidade no tratamento jurídico diferenciado; 3) a consonância desta correlação lógica com “os interesses absorvidos no sistema constitucional”.

 

                                      Na hipótese em estudo, o fator de discriminação é o sexo da vítima. O diferenciado tratamento conferido pela Lei guarda correspondência lógica, porquanto visa à proteção não-deficiente da mulher fragilizada em função da violência doméstica e familiar. Tal correlação lógica encontra total compatibilidade com os interesses absorvidos no sistema constitucional, notadamente com a proibição de proteção deficiente e com compromissos assumidos pelo Brasil em Tratados Internacionais relativos à matéria, notadamente, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Decreto n. 4.377/02) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/96).

 

                                      Não se pode olvidar que o Brasil, no ano de 2001, sofreu condenação junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington (EEUU), ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos), justamente por conta de omissão das autoridades nacionais com relação ao “Caso Maria da Penha”.

 

                                      Diante do exposto, é forçoso reconhecer a plena compatibilidade da Lei n. 11.340/06 com a Constituição Federal e com os Tratados Internacionais suso citados, de modo que válido o óbice contido no art. 41 da Lei Maria da Penha.

 

                                      Incabível, destarte, o “sursis” processual.

 

                                      Por tal motivo, deixo de propor a suspensão condicional do processo ou mesmo de designar outro Promotor de Justiça para fazê-lo e insisto no prosseguimento do feito.

 

                                      São Paulo, 28 de abril de 2008.

 

                                      FERNANDO GRELLA VIEIRA

                                      PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA