Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado nº 54.872/09

Inquérito Policial nº 038.01.2009.000013-0 – MM. Juízo da 1ª Vara Judicial da Comarca de Araras

Assunto: revisão de pedido de arquivamento de inquérito policial

 

 

 

EMENTA: CPP, ART. 28. ARQUIVAMENTO FUNDADO NO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONCURSO DE CRIMES. FURTO CONSUMADO E TENTADO PRATICADOS CONTRA ESTABELECIMENTOS EMPRESARIAIS DISTINTOS. VALOR TOTAL DOS BENS: R$ 556,80 (QUINHENTOS E CINQUENTA E SEIS REAIS). INADMISSIBILIDADE. FATO QUE NÃO SE SUBSUME, SEQUER, À CONCEPÇÃO JURÍDICA DE PEQUENO VALOR (CP, ART. 155, §2º). CRIME IMPOSSÍVEL EM RAZÃO DA VIGILÂNCIA DO SEGURANÇA DE UMA DAS VÍTIMAS. DESCABIMENTO. MEIO IDÔNEO, TANTO QUE O CRIME ANTERIOR, PRATICADO COM O MESMO MODUS OPERANDI, CHEGOU A CONSUMAR-SE.

1.      A aplicação do princípio da insignificância, disseminada na práxis jurisprudencial dos tribunais superiores, não pode olvidar bases mínimas, sob pena de desproteger bem jurídico constitucional. O Supremo Tribunal Federal determina, nesse sentido, que se observem quatro vetores para a incidência da tese excepcional: a inexpressividade da lesão ao bem jurídico; a ausência de periculosidade social da ação; a falta de reprovabilidade da conduta; a mínima ofensividade do comportamento do agente (cf. HC n. 94.931, rel. Min. Ellen Gracie).

2.      Na hipótese vertente, em que houve concursum delictorum, demonstrando disposição de lesar diversos patrimônios, somada ao elevado valor dos objetos materiais (R$ 556,80 – quinhentos e cinquenta e seis reais e oitenta centavos), mostra-se descabida, com a devida vênia, a postura acolhida pelo Douto Promotor de Justiça oficiante.

3.      Não há falar-se, ademais, em crime impossível pelo fato de o segurança (de um dos estabelecimentos) ter notado a ação criminosa da ré. O meio por ela empregado era idôneo para a lesão ao bem jurídico protegido, tanto que seu proceder permitiu a ela subtrair, com êxito, roupas de outra vítima.

4.      A relevância da lesão aos bens jurídicos extravasa o conceito de insignificância e não permite aplicar, ademais, o precedente desta Procuradoria Geral de Justiça, proferido nos autos do Protocolado n. 38.620/09 (conflito de atribuições).

Solução: designação de outro promotor de justiça para oferecer denúncia e prosseguir nos ulteriores termos da ação penal.

                               

 

 

O presente inquérito policial foi instaurado a partir de auto de prisão em flagrante, porque (...) teria praticado, em tese, os crimes de furto consumado e furto tentado (CP, arts. 155, caput e 155, caput, c.c. 14, II).

Pelo que consta, no dia 22 de dezembro de 2008, por volta de 15 horas, a indiciada foi surpreendida na posse de artigos de vestuário, que teria subtraído do estabelecimento comercial denominado “Loja Seller”, situado na Praça Barão, n. 356, na Comarca de Araras.

Na ocasião, constatou-se também que ela trazia consigo outros objetos, que levara (sem pagar) da “Loja Vale a Pena”.

Os bens foram avaliados, no total, em R$ 556,80 (quinhentos e cinquenta e seis reais e oitenta centavos), conforme auto acostado a fls. 24/25.

Ao término das investigações, o Douto Promotor de Justiça requereu o arquivamento do inquérito, alegando configurar a conduta da investigada crime impossível (com relação ao conatus) e, no tocante ao delito consumado, invocou o princípio da insignificância (fls. 41/46).

O MM. Juiz, discordando do pedido, remeteu os autos a esta Procuradoria Geral de Justiça, aplicando o disposto no art. 28 do CPP (fls. 47).

É o relatório.

A tese abraçada pelo competente Representante Ministerial, com a devida vênia, não pode ser aceita, em que pese suas bem lançadas razões.

As declarações acostadas ao feito (fls. 03, 05/07) demonstram suficientemente a prática das infrações penais.

Os objetos foram avaliados em R$ 556,80 (quinhentos e cinqüenta e seis reais e oitenta centavos).

Cuida-se, ao que nos parece, de valor distante do conceito jurídico de insignificância.

A se aplicar o princípio mencionado, resultando na atipicidade material da conduta, estar-se-ia dando à investigada salvo conduto para subtrair, rotineiramente, bens de pouco valor econômico em prejuízo desta vítima ou de outras. Vale dizer, estar-se-ia estimulando o cometimento de infrações patrimoniais de objetos de pequeno valor.

Não se ignora a existência de posturas jurisprudenciais favoráveis ao referido princípio. É de ver, todavia, que o próprio Supremo Tribunal Federal tem colocado limites à sua aplicação, ao exigir o cumprimento de quatro vetores para sua incidência, a saber: a inexpressividade da lesão ao bem jurídico; a ausência de periculosidade social da ação; a falta de reprovabilidade da conduta; a mínima ofensividade do comportamento do agente (cf. HC n. 94.931, rel. Min. Ellen Gracie).

Relevante, outrossim, analisarmos a postura da Augusta Corte Bandeirante no tratamento da matéria. Pois bem, há diversos julgados recentes do Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo afastando a aplicação do princípio em casos semelhantes ao presente, como se nota no julgamento das apelações criminais de número 990.08.101441-6 (1ª Câmara de Direito Criminal), 990.08.043454-3 (4ª Câmara de Direito Criminal), 993.08.047525-3 (5ª Câmara de Direito Criminal), 993.07.036769-5 (8ª Câmara de Direito Criminal), 993.06.107704-3 e 990.08.055191-4 (9ª Câmara de Direito Criminal) e 990.08.068832-4 (14ª Câmara de Direito Criminal).

Não obstante, tal tese tem sido contundentemente repelida. Nesse sentido:

 

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. 
(...)
2. TENTATIVA DE FURTO. PEQUENO VALOR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. LESÃO SIGNIFICATIVA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. DESVALOR DA CONDUTA. TIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. 
3. ORDEM DENEGADA.
(...)
2. É de se reconhecer a tipicidade material da conduta de tentativa de furto de bens de supermercado quando o desvalor da conduta afigura-se significativo frente à violação do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.
3. Na espécie, chama atenção a incongruência da defesa da acusada, cujo interrogatório foi no sentido de negar a existência do crime, enquanto que em outra linha admite-o, porém revestido da insignificância.
4. Ordem denegada”.

(STJ, HC n. 81.769, rel. Ministra Assis Moura, 6ª Turma, D.J.U. de 17-03-2008, p. 01; grifo nosso).

                  

Com respeito ao outro argumento ventilado pelo i. Representante do Parquet, qual seja, a de que o comportamento da agente, no tocante à tentativa de subtração junto à “Loja Seller”, não constitui delito por força do disposto no art. 17 do CP, novamente parece-nos que não lhe assiste razão.

O fato de que era exercida vigilância sobre o patrimônio da vítima, por seu representante, o que teria evitado que os bens saíssem do estabelecimento, não torna atípica a conduta de quem tenta retirá-lo.

Com efeito, o crime impossível pressupõe absoluta ineficácia do meio executório ou impropriedade do objeto material do crime.

No presente caso, o objeto material era idôneo e o meio executório, eficaz. O crime não se consumou somente porque a acusada foi observada por funcionários da empresa, que avisaram (...), o qual a abordou, logrando encontrar os objetos, impedindo a finalização do delito.

Não há como se vislumbrar o argumento de que é impossível a consumação do fato, haja vista que a investigada já o havia feito em outro estabelecimento, denominado “Loja Vale a Pena”.

Cite-se, por oportuno, outro trecho do acórdão acima citado:

 

“PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME IMPOSSÍVEL. CONDUTA PRATICADA SOB VIGILÂNCIA. TENTATIVA POTENCIAL.
(...)
1. A vigilância da conduta do agente por preposto do estabelecimento comercial não retira a potencialidade delitiva, ainda mais quando presente, no caso, a realização e a efetivação do ato volitivo de subtração.
(...)
4. Ordem denegada”.

 

Em face do exposto, reconhece esta Procuradoria Geral de Justiça que o arquivamento não pode prosperar.

É preciso ressaltar que se trata de dois crimes de furto, um consumado e outro tentado, cujo valor total dos bens subtraídos extravasa não só o conceito de insignificância como sequer caberia na definição jurídica de pequeno valor.

Diante de tudo o quanto se expôs, designo outro promotor de justiça para oferecer denúncia e prosseguir nos ulteriores termos da ação penal.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 15 de maio de 2009.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

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