Protocolado nº 58.733/08 – art. 28 do CPP
Inquérito policial nº 415/08 – 1ª Vara Criminal da Comarca de Ribeirão
Preto
Indiciado: (...)
Cuida-se
de inquérito policial instaurado para apurar delito cometido por (...), o qual,
aos 12 de fevereiro de 2008, por volta das 22 horas e 30 minutos, atropelou (...),
produzindo-lhe lesões corporais, consoante descritas no laudo de exame de corpo
de delito de fls. 181/185.
Com o
término do inquérito policial, em que a d. autoridade capitulou o fato como
tentativa de homicídio (além de tráfico de drogas e periclitação da vida ou
saúde alheias), foi o procedimento encaminhado à MM. Vara do Júri de Ribeirão
Preto. O Douto Promotor de Justiça oficiante, então, declinou de sua
atribuição, aduzindo, em síntese, ser incompatível a figura da tentativa com o
dolo eventual (fls. 297/299); por este motivo, requereu a remessa dos autos à
Vara Criminal Comum, o que foi deferido (fls. 301).
O Douto
Promotor de Justiça oficiante na 1ª Vara Criminal da Comarca, de sua parte,
suscitou conflito negativo de atribuição. Sustentou entender configurado crime
doloso contra a vida (fls. 316/324).
O MM.
Juiz indeferiu a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça,
dizendo ter reconhecido a própria competência, motivo pelo qual não existiria
conflito algum a ser dirimido (fls. 352/353). Em face desta decisão,
impetrou-se mandado de segurança, cujo objeto agora parece-nos prejudicado, é a
remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral.
Tendo
em vista que o i. Promotor de Justiça recusara-se (justificadamente) a se
manifestar, o MM. Juiz aplicou, por analogia, o art. 28 do CPP (fls. 356).
É o
relatório.
O
presente protocolado suscita diversas questões. De ver-se, em primeiro lugar,
que há mandado de segurança impetrado contra a decisão judicial que não admitiu
o processamento do conflito de atribuições entre membros do MINISTÉRIO PÚBLICO
PAULISTA acima mencionado. Justamente por esse motivo, esta Procuradoria-Geral
de Justiça não conheceu da provocação inicial feita pelo i. 12º Promotor de
Justiça de Ribeirão Preto.
De
qualquer modo, não se trata, agora, de conflito de atribuições, mas de remessa decorrente da aplicação do art. 28 do
CPP.
De
fato, há um impasse nos autos que precisa ser resolvido, consistente em saber
se o 12º Promotor de Justiça possui atribuição para o oferecimento de denúncia.
Para
isto, é mister enfrentar a questão fulcral, ou seja, a natureza do crime
atribuído na fase investigatória a (...).
Cabe
ponderar que, sob o aspecto objetivo, a prova é cristalina. O indiciado
conduzia seu veículo no dia e horário acima declinados, pela Rua Maximino
Almeida, em alta velocidade e, depois de perder o controle do automóvel, cruzou
a Av. Independência, atravessando o canteiro central desta via, invadindo o
posto de gasolina em que trabalhava o frentista (...), o qual ficou gravemente
ferido.
No
interior do veículo conduzido pelo increpado foram encontrados diversos frascos
contendo “lança-perfume” (fls. 197/200), tendo o sujeito inalado tal substância
momentos antes (v. laudo de fls. 162 e declarações dos policiais militares a
fls. 44/49 e do perito a fls. 179).
O
impacto da colisão foi tão intenso que, além de derrubar uma bomba de
combustível, atingir violentamente o frentista, o automóvel do indiciado
abalroou outro veículo que estava estacionado no local, provocando ferimento
leve em seu proprietário (v. fls. 52/53).
A
dinâmica dos fatos foi registrada por diversas câmeras de segurança instaladas
no posto de gasolina, conforme se nota em diversos laudos periciais encartados
nos autos (fls. 134/141; 204/274).
As
testemunhas foram uniformes em suas declarações (fls. 45/62; 70/71; 120/121;
180). A esposa do ofendido foi ouvida a fls. 104/105. Ele próprio foi
auscultado a fls. 117/118, descrevendo a cena tétrica. O indiciado deu sua
versão a fls. 144/148, alegando que fora submetido a trote acadêmico, contexto
em que ingeriu diversas bebidas alcóolicas. Com referência ao momento do
atropelamento, asseverou que perdera completamente a consciência, somente a
recobrando quando pessoas tentavam agredi-lo e retirá-lo para fora do carro.
Sobre os frascos de lança-perfume, disse desconhecer sua origem, supondo que
tivessem sido ali deixados por veteranos desconhecidos a quem dera carona no
dia.
Aqueles
que presenciaram a colisão e o atropelamento informaram que (...) tentou, sem
êxito, evadir-se do local, acelerando o automóvel quando a vítima estava
debaixo dele (fls. 52/53; 54/56; 57/58; 59/60):
“...e neste momento
eclodiu uma fumaça que tampou tudo, os pneus do Vectra girando, o motorista
acelerando, querendo fugir, continuava a vítima debaixo do carro até que ele
bateu no Corsa que o frentista (...) atendia...” (fls. 55).
“...A cena foi horrível,
vendo o colega meio esmagado debaixo do carro, o motorista querendo fugir e
querendo arrastá-lo mais ainda, mas começou uma grande fumaça que praticamente
tampou o carro...” (fls. 58).
“...mas o colega (...),
que estava meio de lado, foi atingido em cheio pelo Vectra preto e jogado para
trás como um boneco, e o carro continuou e ele ficou por baixo gritando,
tirando a cabeça para os lados para que o pneu não passasse em cima(...). O
motorista do Vectra só não fugiu, porque o dono do veículo Corsa não retirou o
seu carro. Mas mesmo assim, ele fez algumas tentativas de ir embora...” (fls.
59/60).
“...O depoente começou a
mexer o braço e a perna e viu que não tinha sido nada fraturado, passou a
acalmar a esposa, ao mesmo tempo via que o motorista daquele carro escuro, (sic) tentava sair do local, imprimindo
aceleração máxima e os pneus do carro, ‘fritavam’ no concreto duro...” (fls.
70).
A
vítima confirmou que:
“...Ele acelerava mais o
carro, o barulho do motor era muito grande e forte, de repente o declarante se
viu coberto por todo o carro porque o rapaz queria fugir. Como o barulho era muito
forte, o declarante via claramente os pneus do carro sendo virados para o lado,
para o outro, girando em cima do cimento, do piso, e então por várias vezes
balançava a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, com medo que o pneu
atingisse ou passasse sobre sua cabeça...” (fls. 117/118).
Nota-se,
deste modo, que o indiciado, fazendo uso de seu direito de defesa, faltou com a
verdade ao ser interrogado, porquanto disse estar absolutamente inconsciente
quando da colisão. Ocorre que, sem a menor dúvida, ele não só se deu conta do
abalroamento como tentou evadir-se atropelando ainda mais a vítima. De ver-se
que os peritos foram categóricos:
“Esses acentuados
desgastes das bandas de rodagem dos pneus dianteiros, de aspecto recente, com
resíduos de borracha ‘derretida’, coadunavam com os vestígios encontrados no
local (‘marcas’ de atrito de pneumáticos, típicos de ação de tração),
comprovando materialmente a literal ‘fritura’ deles no local, ou seja,
indicativos de aceleração repentina e contínua das rodagens de tração” (fls.
218; v. ainda a conclusão contida no item “
As
testemunhas estimaram que a velocidade imprimida pelo veículo era de
aproximadamente
Em face
das provas robustas suso analisadas, é forçoso concluir suficientemente
caracterizado o crime doloso contra a vida.
É
importante destacar que o comportamento do indiciado pode ser desdobrado em
dois momentos distintos, separados no tempo pela colisão provocada. Assim, até
o momento em que ele embriagado e, ao que tudo indica, sob efeito de drogas,
conduzia o veículo, pode-se verificar em sua conduta dolo eventual, consistente
em ter assumido, de modo consciente e voluntário, o risco de matar ou ferir
terceiros. Da colisão em diante, o que
se percebe é dolo direto, porquanto o agente atropelou ainda mais a vítima,
cujo estado já era grave, passando com o automóvel por cima dela. Registre-se
que as marcas de “fritagem” dos pneus demonstram ter o veículo se deslocado por
alguns metros em função da brusca aceleração imprimida pelo condutor (v.
fotografia de fls. 251).
Conforme
leciona CÉZAR ROBERTO BITENCOURT:
“No dolo direto o agente quer o
resultado representado como fim sua
ação. A vontade do agente é dirigida à realização do fato típico, qual seja,
eliminar a vida alheia. O objeto do dolo direto são o fim proposto, os meios
escolhidos e os efeitos colaterais
representados como necessários à realização do fim pretendido. Assim, o dolo
direto compõe-se de três aspectos: a) a representação
do resultado, dos meios necessários e das conseqüências secundárias; b) o querer o resultado, bem como os meios
escolhidos para a sua consecução; c) o anuir
na realização das conseqüências previstas como certas, necessárias ou
possíveis, decorrentes do uso dos meios escolhidos para atingir o fim proposto
ou da forma de utilização desses meios” (Tratado
de Direito Penal, Vol. 2, 6ª ed., Saraiva, São Paulo, 2007, pág. 35).
O fim
proposto pelo agente e os meios por ele escolhidos correspondem ao dolo direto de primeiro grau e as conseqüências
secundárias (ou colaterais), inerentemente ligadas aos meios escolhidos,
perfazem o dolo direto de segundo grau.
Não há
confundir-se dolo direto de segundo grau (figura presente no comportamento de (...)
após a colisão) com o dolo eventual. Naquele, “o agente pode até lamentar, ou
deplorar, a sua ocorrência, mas se esta
representa efeito colateral necessário (e, portanto, parte inevitável da ação típica), então
constitui objeto do dolo direto”
(CÉZAR ROBERTO BITENCOURT, op. cit.,
pág. 26). Ao decidir conscientemente acelerar o “Vectra”, passando por cima do
ofendido, sua morte tornou-se efeito colateral necessário e, se ela somente não
ocorreu pelo rápido socorro prestado, o agente deve responder por homicídio
doloso tentado.
Em face
do exposto, assiste razão ao i. Promotor de Justiça oficiante, com a vênia do
magistrado, motivo por que designo outro membro do MINISTÉRIO PÚBLICO para
atuar no caso, oferecendo denúncia perante o Tribunal do Júri de Ribeirão
Preto, imputando ao agente o crime doloso contra a vida e os delitos conexos
por ele praticados. Para respeitar a independência funcional do 19º Promotor de
Justiça da Comarca, designo seu substituto automático, a quem cumprirá
prosseguir nos ulteriores termos do processo, e, caso a denúncia seja rejeitada
por eventual declaração de incompetência do Juízo, interpor o competente
recurso em sentido estrito. Expeça-se portaria.
São
Paulo, 27 de maio de 2008.
FERNANDO
GRELLA VIEIRA
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA