Código de Processo Penal, art. 28

Protocolado n.º 63.511/12

Autos n.º 415/07 – MM. Juízo da 1.ª Vara Judicial do Foro Distrital de Ferraz de Vasconcelos

Ré: (..)

Assunto: divergência sobre o enquadramento legal dos fatos

 

EMENTA: CPP, ART. 28. ADITAMENTO DA DENÚNCIA. RECUSA MINISTERIAL. DIVERGÊNCIA LIMITADA AO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FATOS (ESTELIONATO OU APROPRIAÇÃO INDÉBITA AGRAVADA). PEÇA ACUSATÓRIA QUE NÃO EMPREGA OS VOCÁBULOS CONTIDOS NO TIPO PENAL, MAS NARRA CONDUTA QUE A ELE SE SUBSUME. INAPLICABILIDADE DO ART. 384 DO CPP. CASO DE “EMENDATIO LIBELLI”. INTELIGÊNCIA DO ART. 383 DO CPP.

1. A recusa em aditar a denúncia efetuada pelo Representante do Ministério Público não impede a prolação de sentença quando a descrição da peça acusatória encontra-se em conformidade com as provas produzidas.

2. Se a controvérsia se limita à adequada definição jurídica do ato, não há falar-se em “mutatio libelli”. O réu, como é cediço, defende-se das atitudes que lhe são atribuídas, e não de seu enquadramento legal. A petição inicial descreve com fidelidade a conduta praticada pela agente e, muito embora não utilize as expressões linguísticas contidas no preceito primário da norma penal incriminadora vislumbrada pelo d. julgador, oferece a este plenas condições de atribuir ao sujeito o “crimen” cogitado no r. despacho que determinou houvesse aditamento.

3. Quando a quaestio se limita à correção da tipificação legal, portanto, não se faz necessário o mencionado aditamento, uma vez que a sistemática contida no art. 384 do CPP visa à observância do princípio da correlação entre os fatos descritos na exordial e aqueles apreciados na sentença. Suposto defeito na classificação jurídica pode ser corrigido no julgamento, a teor do art. 383 do CPP.

Solução: deixa-se de aditar a denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo.

 

A presente ação penal foi movida pelo Ministério Público em face de (...) imputando-lhe o crime tipificado no art. 171, caput (por duas vezes), c.c. art. 71, caput, ambos do CP.

A denúncia foi recebida (fls. 92), citando-se a acusada para apresentar resposta escrita (fls. 110), encartada a fls. 115/117.

Encerrada a instrução criminal, concedeu-se às partes prazo para apresentação de memoriais escritos (fls. 165), o que se deu a fls. 194/198 e 203.

A MM. Juíza, recebendo os autos conclusos para sentença, considerou que a exordial mereceria aditamento, entendendo que a hipótese concreta não versaria sobre estelionato, mas se ajustaria ao tipo penal descrito no art. 168, § 1.º, III, do CP, determinando nova abertura de vista ao Parquet (fls. 204), que reiterou sua postura (fls. 206), motivando a remessa do feito a esta Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 209).

Eis a síntese do necessário.

A controvérsia estabelecida neste expediente refere-se fundamentalmente a respeito da classificação jurídica adequada ao comportamento delitivo praticado pela ré.

Nesse sentido, é preciso enfatizar que tanto a Ilustre Promotora de Justiça oficiante quanto a Digníssima Magistrada, ao que se depreende do procedimento, são acordes quanto à dinâmica da ocorrência.

Não há dúvida de que a conduta imputada é exatamente aquela narrada na inicial acusatória, a qual formou a base da persecutio criminis in juditio e, ademais, o fundamento balizador do direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório (CF, art. 5.º, LV).

A divergência, portanto, refere-se exclusivamente ao enquadramento legal da ação praticada.

No entender da diligente Representante Ministerial, trata-se de estelionato, por duas vezes (CP, art. 171, caput, c.c. art. 71, caput).

Ressalte-se que a peça inaugural deixa claro o modo como procedeu a agente, eis que, na condição de funcionária da pessoa jurídica denominada “A ONDA SURF”, sendo à época responsável pelo preenchimento das propostas de crediário de novos clientes e entrega a eles dos respectivos cartões de crédito, apoderou-se daqueles expedidos para (...) e (...), adquirindo roupas na loja em que trabalhava e efetuando o pagamento com os mencionados cartões, nos dias 16 e 17 de maio de 2007.

Para a MM. Julgadora, no entanto, cuidar-se-ia de apropriação indébita agravada (CP, art. 168, §1.º, III).

Repise-se, assim, que a controvérsia não diz respeito à narrativa do comportamento levado a efeito pela ré, satisfatoriamente descrito na exordial, mas tão somente à sua definição típica.

Conclui-se, por conseguinte, que a hipótese deve ser regida pelo art. 383 do CPP, e não pelo art. 384, com a devida vênia da mui digna Magistrada.

Cumpre assinalar que o art. 384 do Estatuto Processual Penal disciplina a mutatio libelli, figura intimamente ligada ao princípio da correlação (ou congruência) entre acusação e sentença. Em outras palavras, as providências contidas no dispositivo citado, notadamente o aditamento da denúncia (ou da queixa-subsidiária), visam à que sempre se mantenha uma absoluta correspondência entre os fatos descritos pela acusação e aqueles apreciados na decisão.

É de ver, ainda, que o princípio da correlação ou congruência baseia-se no princípio da inércia da jurisdição e no princípio da ampla defesa. Garante-se, por um lado, o ne procedat iudex ex officio e, por outro, assegura-se ao acusado o direito de somente se ver condenado pelas condutas que foram objeto de narrativa da exordial e sobre as quais pode elaborar sua defesa.

No caso dos autos, independentemente da discussão meritória (se a atitude atribuída à ré deve ser tida como estelionato ou apropriação indébita agravada), mostra-se descabida a aplicação do art. 384 do CPP.

Significa afirmar que, se ao juiz parece ter ocorrido crime diverso, ainda que isto eventualmente importe em pena mais grave, deve, ao final do processo, proferir decisão desclassificatória, sem a necessidade do aditamento, a teor do que determina o art. 383 do CPP (emendatio libelli).

Diante do exposto, deixa-se de aditar a denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo. Publique-se a ementa.

São Paulo, 09 de maio de 2012.

 

    Márcio Fernando Elias Rosa

    Procurador-Geral de Justiça

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