Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado n.º 68.346/10

Processo n.º 949/09 – MM. Juízo da 15.ª Vara Criminal Central (Comarca da Capital)

Ré: (...)

Assunto: revisão de recusa de aditamento da denúncia (CPP, art. 384, §1.º)

 

EMENTA: CPP, ART. 28. ADITAMENTO DA DENÚNCIA POR DETERMINAÇÃO JUDICIAL (CPP, ART. 384, §1º). “MUTATIO LIBELLI”. IMPUTAÇÃO INICIAL POR CALÚNIA CONTRA FUNCIONÁRIO PÚBLICO SEXAGENÁRIO (CP, ART. 138, C.C. ART. 141, II E IV). PROVA SUPOSTAMENTE INDICATIVA DE DELITO DISTINTO DAQUELE NARRADO NA EXORDIAL. INOCORRÊNCIA. DIVERGÊNCIA RELACIONADA COM O ENQUADRAMENTO LEGAL PODE SER CORRIGIDA NA SENTENÇA INDEPENDENTEMENTE DE ADITAMENTO, POR SE TRATAR DE “EMENDATIO LIBELLI” (CPP, ART. 383). DENÚNCIA MANTIDA.

1. Quando a inicial acusatória descreve corretamente os fatos, em absoluta consonância com a prova contida na fase inquisitorial e produzida em juízo, sob o crivo do contraditório, descabe falar em aditamento da exordial.

2. O crime de calúnia se aperfeiçoa com a imputação falsa de fato definido como crime, não se exigindo descrição absolutamente pormenorizada da conduta, com indicação de local, data e demais circunstâncias. Mostra-se suficiente, para tais fins, referência a uma atitude objetiva capaz de importar em fato delituoso. No caso, cuida-se de imputar à ofendida o recebimento de vantagem indevida para, na condição de escrivã de polícia, facilitar o trâmite da investigação para pessoa envolvida no inquérito policial.

3. Impende notar, ademais, que a inicial menciona atitude ofensiva à honra objetiva em perfeita correspondência com o depoimento colhido em juízo, ou seja, ainda que se possa considerar diversa a tipificação legal do comportamento atribuído à ré, por configurar outra infração do mesmo gênero, isso não obsta a que, na sentença, opere-se a desclassificação, pois haverá hipótese de emendatio libelli.  A controvérsia, portanto, limitar-se-ia à adequada definição jurídica do ato. Tendo em conta que a acusada defende-se dos fatos que lhe são dirigidos, e não de seu enquadramento legal, e que a inicial descreve com fidelidade a conduta, oferece esta plenas condições de se atribuir à denunciada o crimen cogitado no r. despacho que determinou houvesse aditamento. Quando a quaestio se limita à correção da classificação jurídica, portanto, não se faz necessário a emenda, uma vez que a sistemática contida no art. 384 do CPP visa à observância do princípio da correlação entre os fatos descritos na exordial e aqueles apreciados na sentença. Suposto defeito circunscrito à subsunção a determinado tipo penal pode ser corrigido quando do julgamento, a teor do art. 383 do CPP.

Solução: deixo de aditar a denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo.

 

 

A presente ação penal foi movida pelo Ministério Público em face da ré, imputando-lhe crimes de calúnia agravada, por duas vezes, em continuidade delitiva (CP, art. 138, c.c. art. 141, inc. II e IV, por duas vezes, na forma do art. 71, caput).

Encerrada a instrução processual, o Ministério Público manifestou-se no sentido de ver acolhida integralmente a pretensão punitiva estatal, nos termos em que deduzida (fls. 132/133 e 137/138). A d. defensoria postulou a absolvição (fls. 143/146).

O MM. Juiz, de sua parte, entendendo que a prova coligida indicaria a ocorrência de delito diverso, a ensejar o aditamento da peça inaugural, remeteu o feito ao Parquet (fls. 148/151).

Em face da recusa de emendar a inicial (fls. 152 e 154), remeteu-se o processo a esta Procuradoria Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP, ao qual faz remissão o art. 384, §1.º, do mesmo Diploma (fls. 155).

É o relatório.

A controvérsia estabelecida neste expediente refere-se ao enquadramento legal adequado ao segundo comportamento praticado pela ré, quando afirmou que a ofendida fora “comprada” pelo advogado da parte contrária, recebendo quantia em dinheiro para arquivar a investigação.

Pois bem. Com a devida vênia do MM. Juiz, assiste razão aos diligentes Membros do Parquet.

Houve, consoante nos parece, calúnia e não simples difamação ou mesmo injúria na segunda conduta perpetrada.

É relevante atentar-se, nesse sentido, que a inicial encontra-se assim redigida no que pertine à mencionada imputação:

 

“Já no dia seguinte, (...) ligou novamente para a Primeira Delegacia de Proteção ao Idoso, sendo atendida pelo estagiário (...). Nessa ocasião, ela queria falar com a escrivã para obter informações sobre uma retratação realizada por sua amiga no curso do mesmo termo circunstanciado.

Diante da resposta do estagiário de que ela deveria ligar mais tarde, já que naquele momento a funcionária estava ocupada, (...), alterando o tom de voz, passou a tecer comentários sobre a idoneidade de (...), afirmando que ela havia sido comprada pela advogada da parte contrária, e que estaria recebendo importância em dinheiro para arquivamento do procedimento policial” (fls. 02-d).

 

Essa imputação corresponde, essencialmente, à fala em juízo da vítima e das testemunhas arroladas pela acusação; confira-se:

 

“(...) Telefonou para um rapazinho que faz estágio lá e tornou a falar para ele, agora eu não sei dizer assim. Falou, realmente, que eu tinha me acertado com a outra parte. Foi o que ela falou para ele e ele mesmo passou” (fls. 101 – trecho das declarações vitimárias).

“(...) E num desses telefonemas, o estagiário, senhor (...) que atendeu, me comunicou que ela havia dito que a escrivã (...) havia recebido dinheiro da advogada da outra parte, que é uma coisa que a gente sabe que não é verdade...” (fls. 104).

“(...) Ela falou: ‘Então, você pede para ela, avisa para ela que eu sei que ela já tem um acordo com a advogada da outra parte, que já está tudo acertado’” (fls. 108 – trecho da fala do estagiário (...)).

 

Nota-se do cotejo, em primeiro lugar, que a calúnia encontra-se suficientemente delineada e, ainda que assim não se considere, existe correspondência entre a narrativa ministerial contida na denúncia e o teor da prova oral.

Não há dúvida, destarte, de que a conduta atribuída a (...) pelas testemunhas é exatamente a mesma prevista na inicial, a qual formou a base da persecutio criminis in juditio e, ademais, o fundamento balizador do direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório (CF, art. 5.º, inc. LV). Parece-nos, então, que a controvérsia não diz respeito à dinâmica dos fatos, satisfatoriamente descritos na exordial, mas tão-somente à sua definição típica. Conclui-se, por conseguinte, que a hipótese deve ser regida pelo art. 383 do CPP, e não pelo art. 384, com a devida vênia do mui digno Julgador.

Cumpre assinalar que o art. 384 do Estatuto Processual Penal disciplina a mutatio libelli, figura intimamente ligada ao princípio da correlação (ou congruência) entre acusação e sentença. Em outras palavras, as providências contidas no dispositivo citado, notadamente o aditamento da denúncia (ou da queixa-subsidiária), visam à que sempre se mantenha uma absoluta correspondência entre os fatos descritos pela acusação e aqueles apreciados na sentença.

É de ver, ainda, que o princípio da correlação ou congruência baseia-se no princípio da inércia da jurisdição e no princípio da ampla defesa. Garante-se, por um lado, o ne procedat iudex ex officio e, por outro, assegura-se ao acusado o direito de somente se ver condenado pelas condutas que foram objeto de narrativa da acusação e sobre os quais pode elaborar sua defesa.

No caso dos autos, independentemente da discussão meritória (se a segunda atitude atribuída à ré deve ser tida como calúnia ou outra infração do mesmo gênero), mostra-se descabida a aplicação do art. 384 do CPP.

Significa afirmar que, se ao juiz parece ter ocorrido crime diverso, deve proferir decisão desclassificatória, sem a necessidade do aditamento, a teor do que determina o art. 383 do CPP (emendatio libelli).

Diante do exposto, deixo de aditar a denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 28 de maio de 2010.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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