Código de Processo Penal, art. 28

Protocolado n.º 76.148/15

Autos n.º 0003695-75.2015.8.26.0635 – MM. Juízo do DIPO 3 (Comarca da Capital)

Indiciado: RAFAEL ALVES MENDES

Assunto: revisão de pedido de arquivamento de inquérito policial

        

EMENTA: CPP, ART. 28. FURTO QUALIFICADO TENTADO (CP, ART. 155, §4.º, INC. I). ARQUIVAMENTO MINISTERIAL FUNDADO NO AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA E RECONHECIMENTO DA INSIGNIFICÂNCIA DO ATO E DE SE TRATAR DE CRIME IMPOSSÍVEL. PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE REMESSA DO FEITO AO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. DESCABIMENTO. QUALIFICADORA MANTIDA (LACRE DE SEGURANÇA NÃO É INERENTE À “RES” E, PORTANTO, CONFIGURA OBSTÁCULO POSTO À SUBTRAÇÃO DO BEM). OBJETOS MATERIAIS AVALIADOS EM R$ 228,90 (DUZENTOS E VINTE E OITO REAIS E NOVENTA CENTAVOS). VALOR EXPRESSIVO. SUJEITO QUE DETÉM DIVERSAS PASSAGENS CRIMINAIS POR FATOS SEMELHANTES. AFASTAMENTO DA TESE DE INSIGNIFICÂNCIA. CRIME IMPOSSÍVEL DECORRENTE DA VIGILÂNCIA EXERCIDA POR FUNCIONÁRIA DA EMPRESA. INAPLICABILIDADE. DIFERENÇA ENTRE FLAGRANTE PREPARADO E ESPERADO. ALEGAÇÃO SUBSIDIÁRIA NÃO ACOLHIDA, POR SE CUIDAR DE DELITO QUALIFICADO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA QUE SE IMPÕE.

1.     O indiciado ingressou no estabelecimento e ingressou no provador com diversas peças de roupas. No interior, quebrou o lacre de duas delas, fazendo uso de um alicate que portava, devolvendo, em seguida, as demais, apoderando-se daquelas. A funcionária efetuou a contagem e notou a falta da mercadoria, observando o increpado, abordado tão logo passou pelos caixas sem efetuar o pagamento, deixando o estabelecimento. A Polícia foi acionada, realizando-se a prisão em flagrante.

2.     A figura qualificada se faz presente. O lacre de segurança instalado nas peças de vestuário constitui elemento tendente a impedir a subtração e não se trata de elemento inerente à coisa subtraída.

3.     Objeto material idôneo e meio executório eficaz, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “(...) A existência de sistema de monitoramento eletrônico ou a observação dos passos do praticante do furto pelos seguranças da loja não rende ensejo, por si só, ao automático reconhecimento da existência de crime impossível, porquanto, mesmo assim, há possibilidade de o delito ocorrer.” (STJ, HC n. 192.539/SP, rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 6.ª Turma, j. em 24/09/2013, DJe de 03/10/2013). Não há como se vislumbrar, ademais, o argumento de que é impossível a consumação do fato. São incontáveis os casos que, em circunstâncias semelhantes, resultam na efetiva retirada dos bens. Inexistiu, de todo modo, qualquer tipo de preparação do flagrante, pela funcionária da empresa, senão mera observação, sem qualquer interferência na conduta consciente e voluntária do increpado.

4.     A aplicação do princípio da insignificância, disseminada na práxis jurisprudencial dos tribunais superiores, não pode olvidar bases mínimas, sob pena de desproteger bem jurídico constitucional. O Supremo Tribunal Federal determina, nesse sentido, que se observem quatro vetores para a incidência da tese excepcional: a inexpressividade da lesão ao bem jurídico; a ausência de periculosidade social da ação; a falta de reprovabilidade da conduta; a mínima ofensividade do comportamento do agente (cf. HC n. 94.931, rel. Min. Ellen Gracie). Pondere-se, ainda, que reconhecer como atípicos comportamentos deste jaez é, nas palavras do eminente Desembargador Francisco Bruno, agir como se o próprio Estado dissesse ao autor do fato: “Isto não é crime, o senhor está autorizado a fazê-lo novamente” (Apelação n. 990.10.079006-4, j. em 29.7.10, 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo).

5.     No caso em apreço, cuida-se de averiguado com histórico de atividades delituosas similares, de tal maneira que o reconhecimento da atipicidade do fato serviria de estímulo à que perpetrasse novas infrações. De mais a ver, a forma qualificada se mostra reveladora de maior reprovabilidade e, desta feita, impede o reconhecimento da bagatela invocada.

6.     De anotar-se, derradeiramente, que o precedente colacionado pelo Douto Promotor de Justiça, no sentido de que se teria infração de menor potencial ofensivo, tendo em vista a presença da figura privilegiada, não tem aplicação na espécie. Cuida-se, repise-se, de furto qualificado tentado e, ainda que se pudesse excogitar do privilegium, a pena jamais atingiria o patamar necessário à configuração da conduta como delito de competência do Juizado Especial Criminal.

Solução: designa-se o promotor de justiça para oficiar nos autos, oferecendo denúncia e prosseguimento no feito em seus ulteriores termos.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada a partir da lavratura de auto de prisão em flagrante, visando à apuração do delito de furto qualificado (art. 155, §4.º, inc. I, do CP) cometido, em tese, por RAFAEL ALVES MENDES.

Encerradas as providências inquisitivas, o Douto Promotor de Justiça, em percuciente manifestação, requereu o arquivamento do procedimento e, subsidiariamente, a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal.

Argumentou que a qualificadora imputada pela d. autoridade policial não teria subsistência, asseverou verificado o crime impossível pela absoluta ineficácia do meio e presente hipótese de insignificância. Alegou, derradeiramente, que deveria ser aplicado, acaso as outras teses não fossem acolhidas, o entendimento de que se cuida de infração de menor potencial ofensivo (fls. 65/93).

O MM. Juiz, discordando dos requerimentos deduzidos, encaminhou a questão para análise desta Procuradoria-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fls. 94/96).

Eis a síntese do necessário.

A razão se encontra com o Digníssimo Magistrado, com a devida vênia do Ilustre Representante Ministerial, a despeito de suas bens lançadas razões; senão, vejamos.

Segundo consta dos autos, no dia 09 de maio p. passado, por volta das 18 horas e 20 minutos, o increpado ingressou no estabelecimento empresarial denominado “Lojas Renner”, situado na Rua Conselheiro Moreira de Barros, n.º 2.780, nesta Capital e, subtraiu, para si, uma camiseta e uma jaqueta, peças avaliadas em R$ 228,90 (duzentos e vinte e oito reais e noventa centavos) – cf. auto de apreensão de fls. 14/15.

Pelo que se apurou, o agente adentrou no provador com oito peças e dele se retirou com sete.

A funcionária da empresa conferiu a quantidade e deu falta de uma vestimenta, ingressando, ato contínuo, no provador antes ocupado pelo autor. Nele, encontro o lacre de segurança rompido.

A testemunha, então, foi à procura do sujeito e o viu ainda no local, aguardando-o sair da loja, tendo o abordado na área comum do “Shopping Center”, no piso imediatamente inferior.

Notando-o com as roupas, o abordou e acionou a Polícia Militar (fls. 03, 05 a 07).

Em seu interrogatório, o sujeito permaneceu em silêncio (fls. 08).

Pois bem.

Com a devida vênia, as teses nas quais fundamentou o competente Membro do Parquet seu pleito de arquivamento não vêm sendo aceitas por esta Procuradoria-Geral de Justiça, em que pese suas judiciosas razões.

 

Da qualificadora

A figura qualificada, em nosso entender, se faz presente.

Não se pode argumentar que o lacre de segurança instalado nas peças de vestuário configure elemento inerente à coisa subtraída, comparando-se a hipótese com o rompimento de vidro de veículos automotores.

Elaborar tal ilação seria supor que alguém adquire a camisa ou a jaqueta e o dispositivo de acionamento do alarme se destina a compor o ornamento das peças.

É certo, com a máxima vênia, que se cuida de elemento tendente a impedir a subtração e, com o emprego de alicate (apreendido nos autos), foi rompido pelo autor.

Justifica-se, destarte, a presença da qualificadora.

 

Do crime impossível

Quanto à alegação de crime impossível, igualmente nos parece ausente hipótese justificadora de sua aplicação.

A circunstância de a representante da vítima não ter deixado de exercer vigilância sobre o patrimônio e as atitudes do increpado não se mostra apta a excluir a adequação típica do delito tentado.

Com efeito, o crime impossível pressupõe absoluta ineficácia do meio executório ou impropriedade do objeto material.

No caso, o objeto material era idôneo e o meio executório, eficaz. A infração não se consumou somente porque o comportamento do sujeito foi percebido pela funcionária do estabelecimento, a qual o abordou após deixar o local, encontrando em seu poder as peças subtraídas.

Não há como se vislumbrar o argumento de que é impossível a consumação do fato. São incontáveis os casos que, em circunstâncias semelhantes, resultam na efetiva retirada dos bens.

Tal tese, ademais, não possui aceitação dos nossos tribunais. Nesse sentido:

 

HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO CONTRA ACÓRDÃO DE APELAÇÃO. SUCEDÂNEO RECURSAL INOMINADO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. FURTO. UM CONSUMADO E UM TENTADO CONTRA O MESMO ESTABELECIMENTO COMERCIAL. CONTINUIDADE DELITIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. CRIME IMPOSSÍVEL. NÃO OCORRÊNCIA PELA SIMPLES EXISTÊNCIA DE VIGILÂNCIA POR SEGURANÇAS E CÂMERAS. CONFISSÃO NO INQUÉRITO CORROBORADA PELA PROVA JUDICIA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE PATENTE. NÃO CONHECIMENTO.

...

2. Consoante entendimento jurisprudencial, o “princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentaridade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material (...) Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento  e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.” (HC Nº 84.412-0/SP, STF, Min. Celso de Mello, DJU 19.11.2004).

3. No caso, o paciente furtou e tentou furtar, em continuidade delitiva, o mesmo supermercado, o que mostra reprovabilidade suficiente para a tipicidade material, não havendo como reconhecer o caráter bagatelar do comportamento imputado, pois houve, em tal contexto, afetação do bem jurídico tutelado, ainda que sejam duas garrafas de uísque, avaliadas, cada uma, em R$ 41,00.

4. A existência de sistema de monitoramento eletrônico ou a observação dos passos do praticante do furto pelos seguranças da loja não rende ensejo, por si só, ao automático reconhecimento da existência de crime impossível, porquanto, mesmo assim, há possibilidade de o delito ocorrer. Precedentes das Turmas componentes da Terceira Seção.

(...) 7. Ordem não conhecida.”

(STJ, HC n. 192.539/SP, rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 6.ª Turma, j. em 24/09/2013, DJe de 03/10/2013; grifo nosso).

                                     

Poder-se-ia cogitar de tentativa inidônea acaso fosse o sujeito induzido à prática criminosa pelo sujeito passivo, como que numa farsa posta em cena para incriminá-lo.

Inexistiu, todavia, qualquer tipo de preparação do flagrante pela funcionária da empresa, senão mera observação, sem qualquer interferência na conduta consciente e voluntária do increpado.

 

Do princípio da insignificância

Com relação à incidência do princípio da insignificância, igualmente não se pode aquiescer com a tese.

Por outro lado, reconhece-se que o valor do bem subtraído não se mostra expressivo; contudo, se aplicado o princípio da insignificância, resultando na atipicidade material da conduta, estar-se-ia estimulando o cometimento de infrações patrimoniais de bens de pequeno valor.

Admitir como atípicos comportamentos desse porte é, nas palavras do eminente Desembargador Francisco Bruno, agir como se o próprio Estado dissesse ao autor do fato: “Isto não é crime, o senhor está autorizado a fazê-lo novamente” (Apelação n.º 990.10.079006-4, j. em 29.7.10, 9.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo).

Não se ignora, outrossim, a existência de posturas jurisprudenciais favoráveis ao referido princípio.

É de ver, todavia, que o próprio Supremo Tribunal Federal tem colocado limites à sua aplicação, ao exigir o cumprimento de quatro vetores para sua incidência, a saber: a inexpressividade da lesão ao bem jurídico; a ausência de periculosidade social da ação; a falta de reprovabilidade da conduta; a mínima ofensividade do comportamento do agente (cf. HC n.º 94.931, rel. Min. Ellen Gracie).

No caso em apreço, cuida-se de averiguado com histórico de atividades delituosas similares, de tal maneira que o reconhecimento da atipicidade do fato serviria de estímulo à que perpetrasse novas infrações (fls. 34/57).

Além disso, se faz aplicável a forma qualificada, reveladora de maior reprovabilidade do ato.

         Registre-se que há diversos julgados recentes do Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo afastando a aplicação do princípio em casos semelhantes ao presente, como se nota no julgamento das Apelações ns. 0002124-36.2010.8.26.0347 (9.ª Câmara Criminal), 0049017-06.2010.8.26.0050 (15.ª Câmara Criminal), 0000674-22.2007.8.26.0587 (11.ª Câmara Criminal), 0096660-23.2011.8.26.0050 (10.ª Câmara Criminal), 0061013-64.2011.8.26.0050 (14.ª Câmara Criminal), 0004838-16.2008.8.26.0063 (5.ª Câmara Criminal).

 

Da inexistência de infração de menor potencial ofensivo

De anotar-se, derradeiramente, que o precedente colacionado pelo Douto Promotor de Justiça, no sentido de que se teria infração de menor potencial ofensivo, tendo em vista a presença da figura privilegiada, não tem aplicação à espécie.

Isto porque se cuida de furto qualificado tentado e, ainda que se pudesse excogitar do privilegium, a pena jamais atingiria o patamar necessário à configuração da conduta como delito de competência do Juizado Especial Criminal.

 

Conclusão

Diante do exposto, designa-se outro membro ministerial para oficiar nos autos, oferecendo denúncia e prosseguindo no feito em seus ulteriores termos.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 03 de junho de 2015.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

/aeal