Código de Processo Penal, art. 28

Protocolado n.º 78.791/15

Autos n.° 3006085-23.2013.8.26.0348 – MM. Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Mauá

Indiciados: ROSANE CARLA DOS SANTOS SILVA e JOSÉ NILSON DA COSTA

Vítima: RENATA MIGUEL DA SILVA

Assunto: indeferimento de pedido de arquivamento de inquérito policial

 

EMENTA: CPP, ART. 28. HOMICÍDIO DOLOSO. RELEVÂNCIA PENAL DA OMISSÃO. HIPÓTESE DE INGERÊNCIA NA NORMA (CP, ART. 13, §2.°, ALÍNEA “C”). CONCURSO MATERIAL COM TRÁFICO PRIVILEGIADO (ART. 33, §3.º, DA LEI N.º 11.343/06). ARQUIVAMENTO FUNDADO NA ATIPICIDADE DOS FATOS. INADMISSIBILIDADE. INDICIADOS QUE CONVIDARAM A VÍTIMA À SUA RESIDÊNCIA, PARA JUNTOS CONSUMIREM DROGAS. INGESTÃO DE ELEVADA QUANTIDADE DE COCAÍNA, SEGUIDA DE MAL SÚBITO E, HORAS DEPOIS, ÓBITO. CRIADO O RISCO, OS INDICIADOS DEIXARAM DE PRESTAR SOCORRO, EMBORA PUDESSEM FAZÊ-LO. ASSUNÇÃO DO RISCO DA SUPERVENIÊNCIA DO DESFECHO LETAL. ELEMENTOS SUFICIENTES PARA O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA.

1.      O inquérito policial revelou que a falecida aceitou convite do casal indiciado para ir ao imóvel de moradia de ambos e, juntos, consumirem drogas. Nesse ambiente, ingeriu elevada quantidade de cocaína e, em face disto, teve mal súbito e veio a óbito. Os investigados, pelo que se depreende dos elementos informativos, não só a incentivaram a ingerir a substância psicoativa, como se revelou ser do costume de ambos (pois testemunhas disseram que faziam isso com frequência, levando outra adolescente para sua casa a fim de fazerem o mesmo), como deixaram de prestar a ela qualquer tipo de socorro, mesmo vendo-a em estado grave. No lugar disso, fugiram para outra unidade federativa, com o escopo de se furtar à responsabilidade penal.

2.      Pode-se concluir, destarte, que a conduta anterior dos agentes criou o risco do resultado morte, configurando-se a figura da “ingerência na norma”, pela qual o legislador impõe ao criador do risco o dever jurídico de agir para impedir o resultado (CP, art. 13, §2.º, “c”). No caso, após convidar a vítima para ir até sua casa e juntos consumirem drogas, os investigados deviam e podiam agir, ao menos acionando socorro, para evitar o desfecho letal, visto que aquela já passava mal em virtude da ingestão de cocaína.

3.      No que toca ao elemento subjetivo, deve este ser avaliado no momento em que, criado o risco e surgido o dever, verifica-se a omissão. Nesse instante era clara a perspectiva do evento trágico e, mesmo podendo antevê-lo, os increpados negaram a devida assistência (direta ou indireta – com o acionamento do necessário socorro), Nesse contexto, a previsão do desfecho era evidente, tendo os agentes assumido o risco de sua ocorrência.

4.      Verifica-se, por fim, a viabilidade de imputar-se aos increpados o delito de tráfico privilegiado (art. 33, §3.º, da Lei n.º 11.343/06), pois os elementos informativos trazem indícios do consumo ocorrido no imóvel do casal, sendo lógico supor (até porque já o fizeram em outras oportunidades), ao menos nesta fase processual, terem eles oferecido a droga para, juntamente com pessoa de seu relacionamento, a consumirem.

Solução: designa-se outro promotor de justiça para oferecer a peça inaugural, devendo prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada para apurar as circunstâncias em torno da morte de RENATA MIGUEL DA SILVA, cujo corpo foi encontrado, sem vida, na residência do casal indiciado, ROSANE CARLA DOS SANTOS SILVA e JOSÉ NILSON DA COSTA, no dia 05 de novembro de 2013.

Pelo que se apurou, a falecida aceitou convite do casal indiciado para ir ao imóvel de moradia de ambos e, juntos, consumirem drogas.

Nesse ambiente, ingeriu elevada quantidade de cocaína e, em face disto, teve mal súbito e veio a óbito.

Os investigados, pelo que se depreende dos elementos informativos, não só a incentivaram a ingerir a substância psicoativa, como se revelou ser de seu costume (pois testemunhas disseram que faziam isso com frequência, levando outra adolescente para sua casa a fim de fazer o mesmo), como deixaram de prestar a ela qualquer tipo de socorro, mesmo vendo-a em estado grave.

No lugar disso, fugiram para outra unidade federativa, com o escopo de se furtar à responsabilidade penal.

Encerradas as providências inquisitivas, o Douto Promotor de Justiça requereu o arquivamento dos autos, destacando a atipicidade da conduta atribuída aos agentes, afirmando que não teriam qualquer responsabilidade quanto ao óbito, imputável à própria falecida e, no tocante ao crime de corrupção de menores e tráfico privilegiado, asseverou acreditar que os agentes imaginaram ser RENATA maior de idade e que a droga por ela consumida lhe pertenceria (fls. 209/212).

O MM. Juiz, contudo, indeferiu o requerimento formulado e sinalizou, senão a existência de delito omissivo impróprio, a viabilidade de se reconhecer o crime de omissão de socorro, aplicando, destarte, o art. 28 do CPP, com a remessa do caso a esta Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 213).

Eis a síntese do necessário.

A razão se encontra com o Digníssimo Magistrado, com a devida vênia do Ilustre Representante Ministerial; senão, vejamos.

Os elementos informativos revelam que os autores, com sua conduta anterior (o convite para o consumo de intensa quantidade de drogas) criaram o risco do resultado (o óbito de Renata). Desta feita, operou-se a figura da “ingerência na norma”, de tal modo que a eles incumbia o dever jurídico de agir para impedir o resultado (CP, art. 13, §2.º, “c”). Os investigados, muito embora obrigados a agir e mesmo tendo condições de, ao menos, chamar por socorro acionando o resgate, omitiram-se e, nessa medida, previram a possibilidade de ocorrer o desfecho letal e, mesmo o antevendo, demonstraram indiferença, preferindo homiziar-se.

Em face disto, atuaram, como bem ponderou a d. autoridade policial, com dolo eventual.

O dolus eventualis, como é cediço, encontra-se traçado em nosso Código Penal, na fórmula abstrata do art. 18, inc. I, in fine, calcada na atitude subjetiva de assumir o risco de produzir o resultado.

A descrição legal, todavia, não é considerada pela doutrina como fiel à essência do dolo eventual, como adverte, entre outros, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (Lições de Direito Penal, A nova Parte Geral, 8.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1985, pág. 178).

O delineamento dessa modalidade de dolo ocorre quando o sujeito prevê o resultado como possível e o aceita ou com ele consente.

Há, portanto, a representação do evento, isto é, o desfecho gravoso passa pela mente do autor, aliada à sua aquiescência, ou seja, à indiferença quanto à sua produção. Como ensina DAMÁSIO DE JESUS:

 

“A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (Direito Penal, Vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2008, pág. 288).

 

Essa anuência à produção do resultado não é, jamais, verbalizada ou mesmo confessada. Não requer, ademais, consentimento explícito e formalmente demonstrado. O único meio de se aferir essa postura psíquica se dá por meio do exame do comportamento exterior. Jamais os indiciados, com efeito, irão declarar perante a autoridade que previram e não se importaram com o evento. Neste diapasão, o que se deve perquirir é identificar no pensamento do autor da conduta a seguinte postura psicológica:

 

"vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado" (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal, 5.ª edição, 10.ª Tiragem, São Paulo, Saraiva, 2002, pág. 303).

 

Nessa forma de dolo, ensina LUIZ LUISI,

 

"o agente se propõe a determinado fim e na representação dos meios a serem usados, bem como na forma de operá-los, prevê a possibilidade de ocorrerem determinadas conseqüências. Quando o agente, apesar de prever essas conseqüências como possíveis - e embora não as deseje - tolera, consente, aprova ou anui na efetivação das mesmas, não desistindo de orientar sua ação no sentido escolhido e querido para atingir o fim visado, consciente da possibilidade das consequências de tal opção, o dolo, com relação às conseqüências previstas como possíveis, é eventual" (O tipo penal e a teoria finalista da ação, Porto Alegre, A Nação Editora, 1979, pág. 74[1]).

 

No caso em tela, nota-se que, mesmo prevendo o trágico desfecho, aquiesceram para com sua ocorrência, optando por fugir em vez de prestar o devido socorro.

De notar-se que o elemento subjetivo, na hipótese de ingerência na norma, não se investiga com a conduta criadora do risco, isto é, não deve ser avaliado no momento do convite ou da ingestão de drogas (até porque, pelo que se supõe, nesse instante a intenção era entorpecer-se e não matar), mas, em vez disso, deve-se pesquisá-lo quando, gerado o perigo, surge a conduta negativa. Nesse instante, não há dúvida, assumiram o risco de causar a morte.

Há, outrossim, a viabilidade de imputar-se aos increpados, ainda, o delito de tráfico privilegiado, descrito no art. 33, §3.º, da Lei n.º  11.343/06, de vez que, tendo o consumo ocorrido no imóvel do casal, é fácil supor terem eles oferecido a droga para, juntamente com pessoa de seu relacionamento, juntos a consumirem.

O oferecimento de denúncia, como é cediço, se satisfaz depois de constatados, nos elementos de informação coligidos, prova da materialidade e indícios suficientes de autoria.

Não se trata de fazer um juízo definitivo de censura, mas apenas de constatar a existência de um mínimo de embasamento para a deflagração do devido processo legal, pois:

 

“não se exige, na primeira fase da persecutio criminis, que a autoria e a materialidade da prática de um delito sejam definitivamente provadas, uma vez que a verificação de justa causa para a ação penal pauta-se em juízo de probabilidade, e não de certeza” (STJ, HC n. 100.296, rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, 5.ª TURMA, DJe de 01/02/2010).

 

No caso em tela, consoante se ponderou, deu-se a reunião do quantum satis para a deflagração da fase judicial, não se podendo excluir, de pronto, esse caminho; em juízo, sob o crivo do contraditório e em cognição exauriente, os fatos poderão ser mais bem aquilatados.

Diante do exposto, designa-se outro promotor de justiça para oferecer a peça inaugural, devendo prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 10 de junho de 2015.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

/aeal



[1] Apud JESUS, Damásio de. O caso da morte do indígena Pataxó – Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, out. 1997. Disponível em: <www.damasio.com.br>.