Código de Processo Penal, art. 28

 

 

Protocolado n.º 84.483/09

Autos n.º 383/09 – MM. Juízo do Juizado Especial da Comarca de Santos

Autor do fato: (...)

Assunto: negativa de oferecimento de denúncia no âmbito do Juízo Comum

 

 

EMENTA: CPP, ART. 28. TRANSAÇÃO PENAL. DESCABIMENTO. DISPARO DE ARMA DE FOGO (LEI N. 10.826/03, ART. 15) E LESÃO CORPORAL DOLOSA LEVE (CP, ART. 129, CAPUT). INEXISTÊNCIA DE CONSUNÇÃO. REMESSA AO JUÍZO COMUM PARA O OFERECIMENTO DE DENÚNCIA.

1. O delito de disparo de arma de fogo é expressamente subsidiário, haja vista a ressalva contida na parte final do art. 15, caput, da Lei n. 10.826/03 (“desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime”).

2. A norma deve ser interpretada sistemática e teleologicamente, o que significa dizer que a infração especial somente desaparece quando o sujeito tencionava cometer outro delito mais grave.

3. Se o agente efetua disparo de arma de fogo e, por acidente, fere alguém, há concurso formal de crimes.

4. Os autos reúnem prova da materialidade e indícios de autoria, demandando, desta feita, o oferecimento de denúncia pelo promotor natural, perante o órgão competente.

Solução: remessa ao Juízo Comum para ajuizar a ação penal.

 

 

 

Cuida-se de procedimento investigatório instaurado para apurar suposta infração de menor potencial ofensivo.

Ao término das diligências policiais, houve manifestações dos Membros do Ministério Público oficiantes colidentes, no sentido de ter ocorrido crime de competência do Juízo Comum (fls. 80/82). Ocorre que nenhum deles postulou a remessa do feito ao órgão competente.

O MM. Juiz, então, acolhendo requerimento formulado pelo advogado do ofendido, aplicou por analogia o art. 28 do CPP, remetendo os autos a esta Procuradoria Geral de Justiça, com o escopo de analisar o enquadramento legal dos fatos e, como consequência, o cabimento de eventual denúncia na esfera da Vara Criminal (fls. 86/87).

É o relatório.

De acordo com os elementos coligidos, no dia 16 de fevereiro de 2009, por volta das 18 horas e 30 minutos, na Rua Carlos Gomes, altura do n. 240, na Comarca de Santos, (...) encontrava-se no interior de seu veículo automotor, juntamente com sua esposa (...), quando houve uma colisão com o automóvel conduzido por (...) (acompanhado de sua mulher, (...)).

Logo em seguida ao abalroamento, do qual somente resultou pequenos danos materiais, iniciou-se discussão verbal entre os envolvidos.

Encerrado o entreveiro, (...) deixou o local com sua esposa e (...), por motivos de somenos importância, efetuou um disparo em direção ao veículo. O projétil, todavia, por erro na execução, atingiu acidentalmente (...), causando-lhe as lesões leves descritas no laudo de exame de corpo de delito de fls. 31.

Eis a síntese dos fatos.

Cumpre destacar, de início, que não há falar-se na hipótese em crime doloso contra a vida, como pretendeu o d. advogado da vítima.

O homicídio tentado requer, como é cediço, que o comportamento do agente seja direcionado à ocisão da vida alheia. Não é o que se vê nos autos. Fosse essa a intenção de (...), não teria se limitado a efetuar um único disparo. Além disso, poderia ter deflagrado tiros durante a discussão verbal, quando o sujeito passivo se encontrava a poucos metros de distância. Não houve, portanto, animus necandi.

Deve-se analisar, então, se os fatos devem ser enquadrados como lesão corporal dolosa leve, com erro na execução (CP, art. 129, caput, c.c. art. 73, 1ª parte), ou disparo de arma de fogo (Lei n. 10.826/03, art. 15).

De acordo com a Lei n. 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), pune-se com reclusão, de dois a quatro anos, e multa, o ato de “disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime”.

A ressalva contida no final da disposição não pode ser interpretada de modo exclusivamente literal.

Toda atividade exegética inicia-se com a leitura do texto, isto é, com a interpretação gramatical; mas nela não se esgota. O verdadeiro sentido e alcance da disposição há de ser aferido por meio dos métodos sistemático e teleológico.

Por esse motivo, o delito previsto na Lei Especial somente não terá lugar quando o agente tiver a finalidade de praticar outro crime mais grave.

Nem poderia ser diferente.

Se o sujeito efetua disparo de arma de fogo em via pública ou em direção a ela (caso dos autos), só por isso fica sujeito a uma pena de dois a quatro anos de reclusão, além da multa. A severidade punitiva justifica-se pelo perigo decorrente do ato praticado. Se o agente tencionava, além do periculum, a lesão a bem jurídico alheio, há concurso (formal) de crimes e não delito único.

Não fosse assim, um crime de lesão corporal leve ou, pior, de lesão culposa, absorveria um fato mais grave.

O princípio da consunção ou absorção não admite que o delito meio seja absorvido pelo delito fim quando aquele é mais grave que este.

Conclui-se, do exposto, que subsiste o disparo de arma de fogo enquanto infração autônoma, sem prejuízo da lesão corporal dolosa leve.

Sob o ponto de vista processual, tem-se um caso de continência por cumulação objetiva (CPP, art. 77, II), justificando a reunião de processos perante o Juízo Comum (Lei n. 9.099/95, art. 60, par. ún.).

Significa que os autos devem ser remetidos ao órgão competente, onde se deverá oferecer denúncia.

Diante do exposto, requeiro a remessa do feito à Vara Criminal, a fim de que o promotor natural tome as providências que o caso requer.

 

São Paulo, 16 de julho de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador Geral de Justiça

 

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