Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado n.º 88.469/09

Inquérito Policial n.º 050.09.004853-9 – MM. Juízo do DIPO 4 (Comarca da Capital)

Investigado: (...)

Assunto: revisão de arquivamento de inquérito policial

 

EMENTA: CPP, ART. 28. USO DE DOCUMENTO FALSO (CP, ART. 304, c.c. ART. 297). CÉDULA DE IDENTIDADE EM NOME DE TERCEIRO COM A FOTOGRAFIA DO AGENTE. INDICIADO FORAGIDO DA JUSTIÇA. EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUTODEFESA. DESCABIMENTO. DENÚNCIA.

1. Não há confundir-se o crime de falsa identidade (CP, art. 307) com o uso de documento falso (CP, art. 304). Na hipótese dos autos, o indiciado utilizou cédula de identidade em nome de terceiro, com sua fotografia aposta, confessando que adquirira o documento espúrio de um indivíduo desconhecido, no centro da cidade.

2. O pedido de arquivamento fundou-se na suposta presença de excludente de ilicitude, consistente no exercício regular do direito de defesa, tese que não se pode admitir, ainda mais considerando a natureza da infração cometida.

3. Com efeito, a se compreender lícita a postura do investigado, dar-se-ia inadmissível salvo-conduto a todos os agentes, os quais poderiam impunemente utilizar-se de nome e qualificação alheias, para furtar-se de sua responsabilidade penal, prejudicando terceiros cujos nomes fossem eventualmente envolvidos no ato.

4. A corrente jurisprudencial favorável à aplicação de semelhante tese ao crime de falsa identidade (CP, art. 307), que esta Procuradoria Geral de Justiça vê com reservas, não tem qualquer aplicação ao caso dos autos, em que é consideravelmente mais grave a infração cometida (CP, art. 304).

Solução: designação de outro promotor de justiça para oferecimento de denúncia.

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apuração da prática, em tese, do delito tipificado no art. 304 do CP (uso de documento falso), que teria sido perpetrado por (...).

Apurou-se que o indiciado fora preso em flagrante por roubo e, durante a lavratura do respectivo auto, exibira cédula de identidade do Estado do Piauí, em nome de outra pessoa, ou seja, (...). Isto porque seria fugitivo do sistema carcerário, mais precisamente da Colônia de Franco da Rocha.

O documento foi apreendido e submetido a exame pericial, concluindo-se pela autenticidade do espelho (cf. fls. 19/22).

Expediu-se ofício ao Instituto de Identificação “João de Deus Martins”, no Estado do Piauí, o qual respondeu não ter sido emitido documento com o número “2.718.915” e que não há prontuário em nome de (...) (fls. 27).

Concluídas as investigações, inclusive com a inquirição do suspeito (fls. 08), o qual confessou o delito, aduzindo que assim agira por ser foragido da Justiça, o feito foi remetido ao DD. Promotor de Justiça.

Este requereu o arquivamento do inquérito, por entender que a conduta do indiciado visava, tão somente, ocultar seu passado criminoso, caracterizando exercício de sua autodefesa (fls. 32).

A MM. Juíza de Direito, discordando de tal posicionamento, houve por bem remeter os autos a esta Procuradoria Geral de Justiça, com fundamento no artigo 28 do CPP (fls. 34/36).

É o relatório.

O presente procedimento enseja duas questões centrais: (i) qual o crime a se imputar, em tese, ao indiciado, em decorrência do documento falso apresentado; (ii) se sua conduta encontra-se amparada por seu direito constitucional de ampla defesa.

Com relação ao primeiro aspecto, deve-se ponderar que o comportamento do sujeito não configura, tão somente, falsa identidade (CP, art. 307). Aliás, mencionado crime é expressamente subsidiário e, no caso dos autos, o que se tem é o uso de documento público falsificado, vale dizer, o agente incorreu, in thesi, no art. 304 c.c. art. 297 do CP.

Isto porque (...) não se limitou a fornecer nome e qualificação de outrem, mas apresentou o documento que, segundo afirmou, adquiriu “...por R$800,00 de um indivíduo no Largo 13 de Maio, o qual não sabe indicar quem seja ou tampouco descreve-lo; Esclarece ainda que forneceu a fotografia e os dados para serem inseridos no documento e depois de três dias o documento lhe foi entregue...”.

Com respeito à segunda questão, qual seja, a da suposta presença de excludente de ilicitude no ato do indiciado, com a devida vênia do Membro do Ministério Público, a razão está com a d. Magistrada.

Não se pode olvidar que o Direito Penal, por meio da incriminação de comportamentos delitivos, volta-se à proteção de bens jurídicos considerados fundamentais. A norma incriminadora violada pelo agente protege, antes de mais nada, a fé pública, a qual inequivocamente restou vulnerada por sua conduta.

Nesse sentido, firme a jurisprudência do Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo:

 

“RECEPTAÇÃO DOLOSA E FALSA IDENTIDADE. Prova da autoria e da materialidade de ambos os delitos. Confissão em harmonia com a prova colhida. Crime impossível. Autodefesa. Inocorrência. Idoneidade do meio empregado. Exercício da autodefesa que não confere ao réu imunidade para cometer crimes. Absorção da receptação pela falsa identidade. Impossibilidade. Delitos com objetividades jurídicas diversas. Condenação mantida. Penas exacerbadas com excessivo rigor. Regime semi-aberto adequado...”

(TJSP, Apelação Criminal n.° 990.08.020629-0 - São Paulo, rel. Des. Tristão Ribeiro, julgado em 04.12.2008; grifo nosso).

 

Ademais disso, a se compreender lícita a postura do investigado, dar-se-ia inadmissível salvo-conduto a todos os indiciados, os quais poderiam impunemente utilizar-se de nome e qualificação alheias, para furtar-se de sua responsabilidade penal, prejudicando terceiros cujos nomes eventualmente pudessem ser citados por eles.

Não se ignora, é bem verdade, a existência de julgados albergando a tese exposta no requerimento ministerial. Ocorre que tal postura, com todo o respeito, põe em risco a fé pública e o bom nome alheio. É discutível, ainda, possa a corrente que vislumbra o exercício de um direito ser aplicada ao caso concreto, em face da natureza do crime cometido. Com efeito, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já decidiu que:

 

“HABEAS CORPUS. USO DE DOCUMENTO FALSO. IMPETRAÇÃO DIRECIONADA À DECISÃO DO JUIZ QUE RECEBEU A DENÚNCIA. INCOMPETÊNCIA DO STJ. PRETENSÃO DE TRANSFERÊNCIA DE PENITENCIÁRIA E DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL PELA APLICAÇÃO DO ENTENDIMENTO PERFILHADO POR ESTA CORTE NO HC 42.663/MG. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REMESSA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM. WRIT NÃO CONHECIDO.

(...).

4.   Ademais, não se verifica flagrante ilegalidade que pudesse levar à superação desse entendimento, pois não está em discussão o crime de falsa identidade (art. 307 do CPB), mencionado no paradigma citado pelo impetrante como aplicável ao caso concreto, mas de uso de documento falso (art. 304 do CPB)

5.   Não obstante a alusão, na denúncia, ao art. 297 do CPB, verifica-se que ao paciente não foi imputada a conduta de falsificar documento público, mas, tão-somente, a de apresentar documento público (carteira de identidade) falsificado a policiais; dessa forma, ao meu sentir, não há que se falar em eventual absorção do crime de falsum pelo de uso, data venia do ilustre parecer ministerial, que se manifestou pela concessão da ordem, de ofício, para trancar a ação penal pela imputação do crime do art. 297 do CPB.

6.   Habeas Corpus não conhecido, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal competente.”

(STJ, HC n. 85.439, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 03/03/2008).

 

Diante do exposto, designo outro promotor de justiça para oferecer denúncia e para prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria. Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 24 de julho de 2009.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

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