Código de Processo Penal, art. 28

 

Protocolado n.º 96.724/12

Inquérito policial n.º 0049990-92.2009 – MM. Juízo do DIPO 4 (Comarca da Capital)

Investigado: a esclarecer

Assunto: revisão de pedido de arquivamento

 

 

EMENTA: CPP, ART. 28. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. FURTO DE SINAL DE TV A CABO. INCIDÊNCIA DA NORMA EXPLICATIVA DO § 3.º DO ART. 155 DO CP. TIPICIDADE FORMAL E MATERIAL. AFASTAMENTO DO ARQUIVAMENTO PELO ARGUMENTO DA ATIPICIDADE DA CONDUTA. DILIGÊNCIAS.

1.     Coisa, para fins penais e objeto material do crime de furto, é tudo que possa constituir objeto da ação física de subtrair, isto é, coisa corpórea passível de ser deslocada, removida, apreendida ou transportada de um lugar para outro. A eventual intangibilidade da coisa não afasta sua idoneidade para ser objeto material de subtração.

2.     De outra parte, o sinal de TV tem indiscutível valor econômico, como amplamente divulgado nos meios de comunicação. A equiparação operada pelo § 3º do artigo 155 do Código Penal alcança o mencionado sinal por se tratar de uma forma de energia. Confira-se julgado da Apelação-SP nº. 0007626-18.2003.8.26.0050, da lavra do Desembargador Otávio de Almeida Toledo, de 13.12.2011. Na mesma esteira, vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça: “O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética. II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo” (REsp 1123747/RS, Min. Rel. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJe 01/02/2011).

3.     Não há negar a existência de precedente na Suprema Corte apontando pela atipicidade da conduta (HC 97261/RS. Min. Joaquim Barbosa. Julgamento: 12/04/2011 - 2ª Turma). Porém, não há registro na Corte Constitucional de outro precedente a respeito, e os Tribunais Superiores divergem sobre o assunto, a demonstrar ser ainda sensível a questão, notando-se, portanto, a necessidade de aguardar apreciação pelo pleno do Supremo Tribunal Federal.

4.     No caso concreto, a reiteração de comportamentos semelhantes, noticiada pelo representante legal da vítima, indica que o arquivamento representará estímulo para a persistência criminosa.

Solução: necessidade de diligência para a identificação da autoria. Afasta-se a possibilidade de promoção de arquivamento pelo argumento de atipicidade.

 

 

O presente inquérito policial iniciou-se mediante requerimento da empresa denominada Net São Paulo S.A., uma vez que, no dia 02 de abril de 2009, funcionários da citada empresa, em procedimento de limpeza da rede externa, constataram a existência de ligação clandestina na Rua Paulo Verissimo da Silva, nº 156, ou seja, o sinal de televisão a cabo estava sendo captado clandestinamente e desviado para o imóvel em questão.

Ao fim das diligências de polícia judiciária, o Douto Promotor de Justiça aduziu que a conduta perpetrada se mostraria penalmente atípica, uma vez que a ilícita recepção do sinal fornecido pela empresa correspondente não constitui objeto material idôneo ao crime de furto, afastando a incidência do art. 155 do CP. Em face disto, pugnou pelo arquivamento dos autos (fls. 97/100).

O MM. Juiz, contudo, considerou improcedentes as razões invocadas, fiando-se na idoneidade da irregular captação do sinal transmitido pelo cabo como res furtivae, pois se trata do desvio de pulsos elétricos, admitindo, portanto, a incidência da norma explicativa do §3.º do art. 155 do CP. Por esse motivo, determinou a remessa do feito a esta Procuradoria-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fls. 101).

Eis a síntese do necessário.

Razão assiste ao d. Magistrado, com a devida vênia do colega oficiante, pois, não só há tipicidade material, isto porque o objeto material é passível de furto, como existem diligências capazes de aprofundar as investigações.

Primeiramente, há que se analisar a questão objeto da apreciação devolvida a esta Procuradoria-Geral de Justiça.

Vale lembrar que objeto material do crime é a coisa ou pessoa sobre a qual recai a conduta.

Com efeito, coisa, para fins penais e objeto material do crime de furto, é tudo que possa constituir objeto da ação física de subtrair, isto é, coisa corpórea passível de ser deslocada, removida, apreendida ou transportada de um lugar para outro. A eventual intangibilidade da coisa não afasta sua idoneidade para ser objeto material de subtração. Contudo, em principio, a luz, o ar, o calor e a água, do mar ou dos rios, não podem ser apreendidos, consumidos ou utilizados em sua totalidade (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial, v.3. 4ed. São Paulo. Saraiva, 2008, p.6). Mas, nas palavras de Nelson Hungria (in Comentários ao Código Penal, 4. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980, v.7, p.20), parcialmente, podem ser aproveitados ou consumidos como força ou energia, e, nesses caso, são passíveis de furto.

Ademais, há que se ressaltar, nos ensinamentos de Heleno Fragoso (in Lições de Direito Penal; Parte Especial, 11ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, v.1, p.186), que não pode existir crime patrimonial se não houver lesão a interesse jurídico apreciável economicamente, aplicando-se, nesses casos, a noção civilística, segundo a qual é elementar ao conceito de patrimônio a avaliação econômica dos bens ou relações que o compõem.

Nessa ordem de ideias, importante trazer o Acórdão da Apelação-SP nº. 0007626-18.2003.8.26.0050, da lavra do Desembargador Otávio de Almeida Toledo, de 13.12.2011:

“O sinal de TV tem indiscutível valor econômico, como amplamente divulgado nos meios de comunicação. Como bem observou o Magistrado sentenciante, é inadmissível que qualquer pessoa alegue desconhecer a necessidade de pagamento pelo fornecimento da programação exclusiva. A equiparação operada pelo §3º do artigo 155 do Código Penal alcança o mencionado sinal por se tratar de uma forma de energia.

O legislador, representante do povo, ao prever tal equiparação, deixa clara a intenção de proteger determinados bens da vida de difícil apreensão física pelo homem, pois é comum que detenham considerável valor econômico. Foi nesse sentido que fez constar o item 56 da exposição de motivos do Código Penal, que transcrevo:Para afastar qualquer dúvida, é expressamente equiparada à coisa móvel e, compatibilizar, reconhecida como possível objeto de furto a "energia elétrica ou suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva de um indivíduo (como, por exemplo, a eletricidade, a radioatividade, a energia genética dos reprodutores, etc.) pode ser incluída, mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita”.

Reforçando seu entendimento pela tipicidade da conduta, veio o legislador a editar a Lei 8.977 de 1995, que dispõe especificamente sobre o serviço de TV a cabo, fazendo constar do referido diploma dispositivo com o seguinte texto: “Art. 35. Constitui ilícito penal a interpretação ou a receptação não autorizada dos sinais de TV a Cabo”. É certo que esse dispositivo não veio ao ordenamento criar novo tipo penal. Trata-se, segundo interpreto, de verdadeira norma jurídica, dotada de eficácia e imperatividade, não devendo ser desprezada como a diretriz cogente de comportamento que é, pois, apesar de carecer de preceito secundário, no plano teleológico, introduz ao ordenamento jurídico a certeza de que a sociedade repudia essa conduta. Apesar da pouca técnica do legislador, a interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, indispensável à operação do Direito, nos leva a crer reforçada a tipicidade da conduta perpetrada pelos apelantes.

Certo é que deixar tais bens desprotegidos causaria grave insegurança jurídica. Como exemplo, imagine-se, no desfecho pretendido pelos apelantes, se fosse atípica a apropriação indevida de sinal de TV a cabo, os consumidores por certo optariam em gozar da programação de forma irregular e as empresas que a fornecem não sustentariam sua atividade. E não se defenda que bastaria considerar a conduta mero ilícito civil, pois isso faria com que os transgressores arcassem com o custo do produto consumido por meses apenas se fossem surpreendidos.

Ademais, é nesse sentido que vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça:O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética. II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo(REsp 1123747/RS, Min. Rel. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJe 01/02/2011). Também nesse sentido foi julgado o recurso especial nº 1076287/RN.

Dessa forma, é inquestionável a existência de valor econômico do sinal de tv a cabo. De outra parte, entender se tratar de mero ilícito civil a conduta de captar clandestinamente o referido bem, frontalmente afrontaria a política criminal institucional desta Procuradoria-Geral de Justiça. 

Com efeito, não há negar a existência de precedente na Suprema Corte apontando pela atipicidade da conduta (HC 97261/RS. Min. Joaquim Barbosa. Julgamento: 12/04/2011 - 2ª Turma). Porém, não há registro na Corte Constitucional de outro precedente a respeito, e os Tribunais Superiores divergem sobre o assunto, a demonstrar ser ainda sensível a questão, que no meu sentir, deveria aguardar apreciação pelo pleno do Supremo Tribunal Federal. 

Registre-se, mais uma vez, que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já considerou que sinal de tv a cabo tem valor econômico e, por isso, pode ser objeto material do crime de furto.

De outra parte, infere-se da análise do expediente inquisitivo a necessidade de diligências, visando esclarecer a autoria delitiva, bem como verificar se realmente ocorreu a subtração.

Trazida aos autos pela empresa Net São Paulo S.A. a informação da existência de captação clandestina de sinal de tv a cabo desviada para o imóvel situado na Rua Paulo Verissimo da Silva, nº 156, diligências foram levadas a efeito, apurando-se ser (...) a proprietária do imóvel.

Em sua oitiva, negou a existência de captação clandestina, alegando ser assinante do serviço oferecido pela empresa, inclusive juntando cópias de contas enviadas em seu nome (fls. 58/59).

De outra banda, o laudo elaborado pela empresa (fls. 24/31), além de confirmar a captação clandestina do sinal de tv a cabo, noticia que o imóvel referido não consta como cliente em seus bancos de dados (fls. 32).

Em face de tal contexto, afigura-se prudente que as diligências prossigam, a fim de se determinar: (i) nova oitiva do representante legal da empresa Net São Paulo S.A., para que informe a origem das faturas copiadas a fls. 68/69, já que a empresa alega que a residência jamais esteve cadastrada como cliente para recebimento do serviço; (ii) nova oitiva de (...), para que informe quem mais reside no imóvel e, identificadas eventuais pessoais, que sejam inquiridas a respeito.

 Diante do exposto, designo outro promotor de justiça para requisitar as diligências acima, além de outras que julgar pertinentes. Concluídas as providências, poderá o representante ministerial designado requerer, com absoluta independência funcional, o que lhe parecer adequado (insistir no arquivamento – salvo pelo argumento da atipicidade da conduta -, oferecer denúncia ou outra medida cabível). Fica facultado ao promotor designado observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria.

 

                             São Paulo, 03 de julho de 2012.

 

                  Márcio Fernando Elias Rosa

                    Procurador-Geral de Justiça

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