Código de Processo Penal, art. 384, §1.º

Protocolado n.º 33.116/11

Autos n.º 194/09 – MM. Juízo da Comarca de Dois Córregos

Réu: (...) E OUTROS

Assunto: controvérsia sobre a necessidade de aditamento à denúncia

 

 

EMENTA: CPP, ART. 384, §1º. ADITAMENTO À DENÚNCIA. IMPUTAÇÃO DE LESÕES CORPORAIS DOLOSAS, A TÍTULO DE DOLUS EVENTUALIS. MAGISTRADO QUE ENTENDE DEMONSTRADA A FIGURA DA CULPA CONSCIENTE. EMENDA À INICIAL DESPICIENDA. HIPÓTESE EM QUE A EXORDIAL DESCREVE TODAS AS ELEMENTARES DA CONDUTA, INSERINDO A AFIRMAÇÃO DE QUE OS ACUSADOS ASSUMIRAM O RISCO DE PRODUZIR O RESULTADO. EVENTUAL RECONHECIMENTO DA FIGURA CULPOSA CORRESPONDE, NESTE CONTEXTO, À PROCEDÊNCIA PARCIAL DA AÇÃO. ADITAMENTO DESNECESSÁRIO.

1.     Na hipótese dos autos, independentemente da discussão principal, consistente em saber se os denunciados agiram mediante dolo eventual ou culpa consciente, o aditamento da preambular não se faz premente. Isto porque inexiste deficiência ou lacuna na peça acusatória, que descreve pormenorizadamente o comportamento delitivo perpetrado, em tese, pelos três agentes. O dissídio cinge-se à determinação do elemento subjetivo/normativo do injusto, isto é, ao reconhecimento do dolo eventual ou da culpa consciente.

2.     A distinção entre tais figuras reside em que na primeira, o sujeito ativo prevê o resultado e assume o risco de produzi-lo, ao passo que na outra, embora o anteveja mentalmente, procura evitá-lo, confiando levianamente em sua habilidade. Na culpa consciente, inexiste a anuência ao evento, a aquiescência com o resultado lesivo, a indiferença quanto à sua produção. Pode-se dizer, destarte, que o dolo eventual representa um plus em relação a ela. Assemelham-se, portanto, em todos os seus aspectos, exceção feita a esta característica que torna o dolus mais grave e severamente punido que a culpa.

3.     Quando se transpõe a diferença acima exposta para o campo processual, notadamente no que pertine ao debate trazido nestes autos, percebe-se que a acusação, quando centrada na figura prevista no art. 18, inc. I, do CP, deve conter, necessária e obrigatoriamente, todos os elementos que aquela baseada na culpa consciente possuiria, agregada daquele plus a que antes se fez alusão, isto é, à assunção do risco (na dicção do legislador) ou indiferença quanto ao resultado (na lição doutrinária).

4.     Desta feita, quando o julgador encontrar-se diante de uma denúncia imputando dolo eventual ao sujeito e considerar que a prova indica diversamente, sinalizando, ao invés, para a culpa consciente, poderá assim o reconhecer em sua sentença, sem a necessidade de aditamento. Significa, em outras palavras, que estará julgando a pretensão punitiva deduzida na denúncia parcialmente procedente. Insista-se: equivale a dizer que o magistrado identificou a comprovação de todas as elementares imputadas ao acusado, salvo a mencionada assunção de perigo, isto é, aquele plus que distingue o dolus eventualis da culpa consciente.

5.     Esta situação é justamente o que se identifica neste processo, em que a peça acusatória descreve detalhadamente a atitude dos increpados. Poder-se-ia argumentar que ela não cita, em momento algum, ato imprudente, negligente ou imperito. Tal assertiva, contudo, mostrar-se-ia equivocada. A inicial, embora não empregue os termos “imprudência”, “negligência” ou “imperícia” (o que a rigor seria desnecessário, já que os réus se defendem dos fatos que lhes são atribuídos e, ademais, iura novit curia), descreve com suficiente riqueza de detalhes fatos que podem muito bem corresponder a uma das modalidades de culpa mencionadas, bastando que, para tanto, se reconheça que os agentes não assumiram o risco de causar lesões corporais nas vítimas.

6.     O que se conclui, portanto, é que, em verdade, a controvérsia estabelecida neste expediente refere-se fundamentalmente a respeito da comprovação (ou não) da aquiescência com o evento lesivo – matéria adstrita à interpretação do material probatório.

7.     Cumpre assinalar que o art. 384 do Estatuto Processual Penal, o qual disciplina a mutatio libelli, encontra suas raízes no princípio da correlação (ou congruência) entre acusação e sentença. Em outras palavras, as providências contidas no dispositivo citado, notadamente o aditamento da denúncia (ou da queixa-subsidiária), visam à que sempre se mantenha uma absoluta correspondência entre os fatos descritos pela acusação e aqueles apreciados na sentença.

8.     É de ver, ainda, que o princípio da correlação ou congruência baseia-se no princípio da inércia da jurisdição e no princípio da ampla defesa. Garante-se, por um lado, o ne procedat iudex ex officio e, por outro, assegura-se ao acusado o direito de somente se ver condenado pelas condutas que foram objeto de narrativa da acusação e sobre as quais pode elaborar sua defesa.

9.     No caso dos autos, independentemente da discussão meritória (se a primeira atitude atribuída aos réus deve ser tida como lesão corporal dolosa ou culposa), mostra-se descabida a aplicação do art. 384 do CPP. Significa afirmar que, se ao juiz parece ter ocorrido crime diverso, ainda que isto importe em pena mais grave, deve proferir decisão desclassificatória, sem a necessidade do aditamento.

Solução: deixa-se de aditar a denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo.

 

 

 

A presente ação penal foi movida pelo Ministério Público em face do réu acima epigrafado, que, juntamente com outros indivíduos, foram responsáveis pela produção de lesão corporal de natureza grave em (...), lesões leves em (...), (...) e (...) e por vender bebidas alcoólicas a adolescentes.

Ao cabo da instrução processual, a MM. Juíza vislumbrou a necessidade de aditamento à inicial, destacando que a prova não demonstraria terem os acusados atuado dolosamente, apontando, destarte, a necessidade de emendar a peça acusatória a fim de inserir a descrição da culpa no proceder dos réus (fls. 407/414).

O Douto Representante do Ministério Público recusou-se a acatar a determinação (fls. 451), reiterando os termos dos seus judiciosos memoriais apresentados a fls. 356/370.

A Digna Magistrada, então, aplicou à espécie o art. 384, §1.º, do CPP e encaminhou o feito a esta Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 416).

Eis a síntese do necessário.

Com a devida vênia da Nobre Julgadora, cremos que a providência cuja necessidade se apontou mostra-se desnecessária no caso dos autos.

Deve-se acentuar que, independentemente da discussão principal, consistente em saber se os denunciados agiram mediante dolo eventual ou culpa consciente, o aditamento da preambular não se faz premente.

Insista-se que não há deficiência ou lacuna na peça acusatória, que descreve pormenorizadamente o comportamento delitivo perpetrado, em tese, pelos três agentes. O dissídio cinge-se à determinação do elemento subjetivo/normativo do injusto, isto é, ao reconhecimento do dolo eventual ou da culpa consciente.

A distinção entre tais figuras reside em que na primeira, o sujeito ativo prevê o resultado e assume o risco de produzi-lo, ao passo que na outra, embora o anteveja mentalmente, procura evitá-lo, confiando levianamente em sua habilidade.

Deve-se advertir, não obstante, que a descrição legal do dolus eventualis, contida no art. 18, inc. I, do CP, não se mostra fiel à sua essência, como bem advertia, entre outros, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (Lições de Direito Penal, A nova Parte Geral. 8.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1985. pág. 178). O delineamento dessa modalidade de dolo ocorre quando o sujeito prevê o resultado como possível e o aceita ou com ele consente. Há, portanto, a representação do evento, isto é, o desfecho gravoso passa pela mente do autor, aliada à sua aquiescência, ou seja, à indiferença quanto à sua produção. Como ensina DAMÁSIO DE JESUS: “A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (Direito Penal. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2008. pág. 288).

Essa anuência à produção do resultado não é, jamais, verbalizada ou mesmo confessada. Não requer, ademais, consentimento explícito e formalmente demonstrado. O único meio de se aferir essa postura psíquica se dá por meio do exame do comportamento exterior. Jamais o indiciado ou réu, com efeito, irá declarar perante a autoridade que previu e não se importou com o evento. Neste diapasão, o que se deve perquirir é identificar no pensamento do autor da conduta a seguinte postura psicológica: "vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado" (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal. 5.ª edição. 10.ª Tiragem. São Paulo: Saraiva, 2002. pág. 303).

Na culpa consciente, inexiste a anuência ao evento, a aquiescência com o resultado lesivo, a indiferença quanto à sua produção. Pode-se dizer, destarte, que o dolo eventual representa um plus em relação a ela. Assemelham-se, portanto, em todos os seus aspectos, exceção feita à esta característica que torna o dolus mais grave e severamente punido que a culpa.

Quando se transpõe a diferença acima exposta para o campo processual, notadamente no que pertine ao debate trazido nestes autos, percebe-se que a acusação, quando centrada na figura prevista no art. 18, inc. I, do CP, deve conter, necessária e obrigatoriamente, todos os elementos que aquela baseada na culpa consciente possuiria, agregada daquele plus a que antes se fez alusão, isto é, à assunção do risco (na dicção do legislador) ou indiferença quanto ao resultado (na lição doutrinária).

Desta feita, quando o julgador encontrar-se diante de uma denúncia imputando dolo eventual ao sujeito e considerar que a prova indica diversamente, sinalizando, ao invés, para a culpa consciente, poderá assim o reconhecer em sua sentença, sem a necessidade de aditamento. Significa, em outras palavras, que estará julgando a pretensão punitiva parcialmente procedente. Insista-se: equivale a dizer que o magistrado identificou a comprovação de todas as elementares imputados ao acusado, salvo a mencionada assunção de perigo, isto é, aquele plus que distingue o dolus eventualis da culpa consciente.

Esta situação é justamente o que se identifica neste processo.

Vale registrar, neste diapasão, que o cerne da peça acusatória, no que pertine à imputação do resultado aos agentes, encontra-se no quarto parágrafo de fls. 03-D, quando se afirma que a forma utilizada para servir a bebida aos clientes não era apropriada ou segura, no parágrafo seguinte, quando há a explicitação da responsabilidade penal omissiva referente aos réus (...) e (...), reforçado este aspecto no último parágrafo de fls. 04-D e no primeiro, de fls. 05-D.

Finalmente, no que tange à causa próxima e direta dos resultados, a narrativa correspondente pode ser constatada no primeiro parágrafo de fls. 04-D.

Nos trechos referidos encontram-se subsídios à imputação objetiva do resultado, cabendo à MM. Juíza, em face da prova amealhada, julgar se houve ou não a assunção do risco. Em caso afirmativo, subsiste a integralidade da acusação formulada. Na hipótese inversa, remanesce a responsabilidade a título de culpa consciente.

Insista-se uma vez mais: ainda que se considerem presentes os delitos de pequeno potencial ofensivo, não há o que se descrever na denúncia.

Poder-se-ia argumentar que ela não cita, em momento algum, ato imprudente, negligente ou imperito. Tal assertiva, contudo, mostrar-se-ia equivocada. A inicial, embora não empregue os termos “imprudência”, “negligência” ou “imperícia” (o que a rigor seria desnecessário, já que o réu se defende dos fatos que lhe são atribuídos e, ademais, iura novit curia), descreve com suficiente riqueza de detalhes atitudes que podem muito bem corresponder a uma das modalidades de culpa mencionadas, bastando que, para tanto, se reconheça que os agentes não assumiram o risco de causar lesões corporais nas vítimas.

O que se conclui, portanto, é que, em verdade, a controvérsia estabelecida neste expediente refere-se fundamentalmente a respeito da comprovação (ou não) da aquiescência com o evento lesivo – matéria adstrita à interpretação do material probatório.

Cumpre assinalar que o art. 384 do Estatuto Processual Penal, o qual disciplina a mutatio libelli, encontra suas raízes no princípio da correlação (ou congruência) entre acusação e sentença. Em outras palavras, as providências contidas no dispositivo citado, notadamente o aditamento da denúncia (ou da queixa-subsidiária), visam à que sempre se mantenha uma absoluta correspondência entre os fatos descritos pela acusação e aqueles apreciados na sentença.

É de ver, ainda, que o princípio da correlação ou congruência baseia-se no princípio da inércia da jurisdição e no princípio da ampla defesa. Garante-se, por um lado, o ne procedat iudex ex officio e, por outro, assegura-se ao acusado o direito de somente se ver condenado pelas condutas que foram objeto de narrativa da acusação e sobre as quais pode elaborar sua defesa.

No caso dos autos, independentemente da discussão meritória (se a primeira atitude atribuída aos réus deve ser tida como lesão corporal dolosa ou culposa), mostra-se descabida a aplicação do art. 384 do CPP.

Significa afirmar que, se ao juiz parece ter ocorrido crime diverso, ainda que isto importe em pena mais grave, deve proferir decisão desclassificatória, sem a necessidade do aditamento.

Diante do exposto, deixo de aditar a denúncia ou de designar outro promotor de justiça para fazê-lo.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 14 de março de 2011.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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