Código de Processo Penal, art. 28

 

 

Protocolado n.º 96.847/09

Autos n.º 050.07.049647-1 – MM. Juízo do DIPO 4

Vítima: (...)

Assunto: revisão de arquivamento de inquérito policial

 

 

 

EMENTA: CPP, ART. 28. DUPLICATA SIMULADA (CP, ART. 172). TÍTULO EMITIDO ELETRONICAMENTE, CUJA CIRCULAÇÃO SE DEU POR MEIO VIRTUAL. INEXISTÊNCIA DE PAPEL MATERIALIZANDO A CÁRTULA. IRRELEVÂNCIA. EMISSÃO DA CÁRTULA. SENTIDO NORMATIVO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA QUE SE IMPÕE.

1.      O crime de duplicata simulada dá-se quando o agente “Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado”.

2.      O conceito de emissão não deve ser interpretado de maneira puramente objetiva, como se fora sinônimo de elaborar um documento, em papel, e entregá-lo a outrem. O sentido da conduta é normativo e compreende o ato de pôr em circulação, inclusive por meio eletrônico.

3.      É importante frisar que a confecção eletrônica do documento, consoante se verificou nos autos, é amparada por lei (art. 8º, par. ún., da Lei n. 9.492/97 – Lei de Protestos).

Solução: designo outro promotor de justiça para oferecer denúncia.

 

 

 

Cuida-se o presente de inquérito policial instaurado mediante requerimento formulado por (...), na condição de sócio da empresa (...), ao noticiar a prática, em tese, do crime de duplicata simulada (CP, art. 172), que teria sido perpetrado contra a pessoa jurídica acima epigrafada.

O Douto Promotor de Justiça oficiante entendeu por bem requerer o arquivamento dos autos, vislumbrando a ausência de tipicidade da conduta, por não ter vislumbrado no comportamento do agente emissão de título de crédito (fls. 220/222).

A MM. Juíza, entretanto, discordando de tal posicionamento, remeteu o feito a esta Procuradoria Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fls. 228/234).

É o relatório.

Da narrativa processual, extrai-se que, no dia 15 de maio de 2007, o representante legal da (...) compareceu perante a autoridade policial, aduzindo que recebeu em seu estabelecimento uma correspondência encaminhada pelo 1.º Tabelião de Protesto de Letras e Títulos da Capital, informando-lhe que deveria efetuar o pagamento de uma duplicata no valor de R$ 11.268,00 (onze mil, duzentos e sessenta e oito reais), apresentada pelo (...), sacada por (...).

Segundo alegou (...), a empresa nunca realizou qualquer tipo de operação comercial ou mercantil com tal pessoa jurídica.

Disse, ainda, que posteriormente, em pesquisa junto à rede mundial de computadores, tomou conhecimento de que havia mais outros oito títulos sendo protestados, figurando como sacadora a (...).

(...) revelou que, ato contínuo, entrou em contato com seu contador, (...), o qual aduziu que a empresa também era sua cliente e estaria com muitos problemas. A seguir, tentou localizá-la, mas não obteve êxito.

Foram ouvidas testemunhas (fls. 09/10, 35/36, 43/44, 66/67, 110/111 e 186).

O último depoente, (...), gerente da conta bancária da empresa (...), esclareceu que esta realizava movimentação regular, consistente na “troca ou antecipação” de valores vinculados a duplicatas, na qual a instituição financeira antecipava tais créditos para a empresa e posteriormente os cobrava do devedor.

Há nos autos ofício oriundo do (...), aduzindo que o título objeto do presente feito (de número 14447-1), não teria transitado pela instituição em meio físico, e, sim, em arquivo eletrônico, sob a forma de “carteira de desconto, sendo que, em 08/05/2007, houve a transferência de carteira para cobrança simples, ocasião em que foi debitada a conta do cliente qual seja, (...), e posteriormente ocorreu o protesto em nome do sacado/devedor” (fls. 167).

Pois bem. A questão fundamental a ser analisada consiste em definir o que se entende por “emissão” do título e, portanto, qual o momento consumativo da infração penal descrita no art. 172 do CP.

Há, como se sabe, divergência a respeito do assunto. A orientação majoritária, no entanto, caminha no sentido de que não basta preenchê-la, sendo necessário colocá-la em circulação.

         Confira-se, nesse sentido, precedente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

 

“PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DUPLICATA SIMULADA. ART. 172 DO CÓDIGO PENAL. CRIME FORMAL E UNISSUBSISTENTE. COMPETÊNCIA QUE SE DEFINE PELO LOCUS DELICTI. COMPETENTE A COMARCA ONDE OS DOCUMENTOS FORAM POSTOS INICIALMENTE EM CIRCULAÇÃO, INDEPENDENTE DO LOCAL DE OCORRÊNCIA DO PREJUÍZO. RECURSO PROVIDO.

(...)

A consumação do delito previsto no art. 172 do CP, crime formal e unissubsistente, dá-se com a simples e efetiva colocação da duplicata em circulação, independentemente do prejuízo.

Demonstrado que a emissão dos títulos de crédito foi efetuada na cidade Franca/SP, consoante documentos acostados aos autos, a competência para o processamento e julgamento do feito é do Juízo Comum Estadual daquela Comarca, lugar em que ocorrida a infração”.

(STJ, RHC n. 16.053, rel. Ministro PAULO MEDINA, DJU de 12/09/2005, p. 368).

 

O que há de peculiar no caso em tela é que a cártula oriunda da empresa sacadora não foi traduzida para meios físicos, ou seja, o papel, mas foi realizada por mecanismos virtuais (isto é, informáticos).

Ora, não parece correto interpretar a ação típica “emitir” como sinônimo de transcrever em papel e pôr em circulação, até porque a confecção eletrônica do documento é amparada por lei (art. 8º, par. ún., da Lei n. 9.492/97 – Lei de Protestos). Significa dizer que a emissão não tem um sentido puramente descritivo, mas normativo.

De acordo com o autorizado magistério de MARCOS DESTEFENNI,

 

“... documento é toda representação de um fato ou de um ato, podendo apresentar-se por diversas formas. Portanto, nada impede a existência de documentos que tenham meios eletrônicos como suporte. Assim, por exemplo, nada impede que o ato ou fato seja representado por uma sequência de bits armazenados no hardware de um computador.” (Curso de Processo Civil, tomo I, 2.ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 174).

 

Prossegue o autor, citando MOACYR AMARAL SANTOS,

“mais do que uma coisa, o documento é um opus, resultado de um trabalho. E, como tal, se apresenta materialmente sob certa maneira ou por certo meio. Normalmente, os documentos tomam corpo no papel em que foi lançado o escrito. Daí a sinonímia usual entre documento, escritura, escrito. Mas outros materiais aptos para receber e guardar a coisa representada – a tela, a cera, o metal, a pedra e coisas semelhantes – podem ser aproveitados para a formação de documentos. Na verdade, a lei apenas regulamenta a chamada prova literal, não se preocupando diretamente com documentos que se não revistam da forma de escritos.” (“in” Prova judiciária no cível e comercial, São Paul: Max Limonad, 1972, v. 4, p. 46).

 

Infere-se, destarte, que o título sem lastro foi emitido, ainda que virtualmente, tendo sido encaminhamento ao (...) através do procedimento denominado “antecipação de recebíveis”.

Referida instituição, posteriormente, o levou a protesto, por falta de pagamento, tendo sido expedido, aí sim, o documento escrito (fls. 20).

Nota-se, portanto, que a cártula foi colocada em circulação, caracterizando-se, assim, o crime tipificado no art. 172 do CP.

Diante do exposto, com a devida vênia do entendimento esposado pelo i. Representante Ministerial, não é o caso de, pelo menos por ora, arquivarem-se os autos.

Frise-se, por derradeiro, que, para o oferecimento da denúncia, a lei não exige provas rigorosas, como aquelas que são necessárias para uma condenação. Como lembra PAGANELLA BOSCHI,

 

“para o desencadeamento da persecução, basta que as provas sejam capazes de despertar um juízo de suspeito, o suficiente para mostrar que a acusação não é um fruto de criação cerebrina ou mero capricho da acusação” (Ação Penal, Rio de Janeiro, Editora AIDE, 1997, 2.ª ed., p. 94).

 

Em face do exposto, reconhece esta Procuradoria-Geral de Justiça que há elementos para se propor a ação penal em face do investigado.

Diante disso, designo outro promotor de justiça para oferecer a peça inaugural, bem como para prosseguir no feito em seus ulteriores termos.        

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria. Publique-se a ementa.

 

 

São Paulo, 11 de agosto de 2009.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

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