Código de Processo Penal, art. 28

Protocolado n.º 97.807/14

Autos n.º 0001665-08.2014.8.26.0666 – MM. Juízo da Vara Judicial do Foro Distrital de Artur Nogueira

Indiciado: (...)

Assunto: revisão de promoção de arquivamento do inquérito policial

 

EMENTA: CPP, ART. 28. LESÃO CORPORAL LEVE EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR CONTRA A MULHER (CP, ART. 129, §9.º, NA FORMA DA LEI N. 11.340/06). PEDIDO DE ARQUIVAMENTO FUNDADO NO PRINCÍPIO DA BAGATELA IMPRÓPRIA. INADMISSIBILIDADE. IRRELEVÂNCIA DE EVENTUAL DESINTERESSE DA OFENDIDA NA CONTINUIDADE DA PERSECUÇÃO CRIMINAL. DELITO DE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA (STF, ADIN 4.424 E ADC 19). TESE QUE CONTRARIA DIVERSOS PRECEITOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E COLIDE COM COMPROMISSOS INTERNACIONAIS ASSUMIDOS PELO BRASIL NO COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA QUE SE IMPÕE.

1.     Há nos autos prova da materialidade, consubstanciada em relatório de atendimento médico e nas declarações vitimárias, bem como indícios suficientes de autoria. A denúncia, portanto, deve ser ajuizada.

2.     Importa destacar que o fato configura delito de ação penal pública incondicionada, motivo pelo qual se mostra irrelevante a manifestação da ofendida no sentido de não querer ver o agente processado. O oferecimento da petição inicial, em semelhante contexto, é a medida que se afigura compatível com o princípio da obrigatoriedade da ação penal de iniciativa pública (CPP, art. 24).

3.     O princípio da bagatela imprópria, de duvidosa aplicabilidade, se revela de todo inadmissível, porque importa em admitir ter o Poder Judiciário a possibilidade de reconhecer, de modo discricionário, que a imposição da pena fica ao talante do magistrado. A não aplicação da sanção em decorrência de sua pretensa desnecessidade somente se encontra autorizada quando há expressa autorização legislativa. É justamente para isso que existe o instituto do perdão judicial, o qual, segundo o Código Penal, é cabível somente quando previsto em lei (art. 107, inc. IX).

4.     Acrescente-se, outrossim, que a legislação brasileira adotou a teoria normativa pura da culpabilidade, opção que repele, de per si, a tese invocada no pedido de arquivamento. Com efeito, o princípio da bagatela imprópria funda-se na teoria funcionalista da culpabilidade, para a qual a aplicação da pena requer, além do juízo de reprovabilidade, a análise da sua necessidade concreta.

5.     Note-se, ainda, que o multicitado princípio, na forma em que sustentado, tem como premissa a tese que entende se prestar a pena exclusivamente à prevenção especial, quando, em verdade, seu escopo se dirige igualmente à prevenção geral e à reprovação pelo ato cometido (vide art. 59, caput, do CP).

6.     Registre-se, por não menos oportuno, que, se aplicada a casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher, a ideia de bagatela imprópria vai de encontro com a Lei Maria da Penha e com os compromissos internacionais assumidos pelo país no sentido do firme combate à violência de gênero.

7.     Esse tipo de filosofia, em última análise, premia o agressor, e, por derradeiro, foi duramente combatido pela Suprema Corte no julgamento das ADIn 4.424 e ADC 19.

8.     Frise-se, em arremate, que não se trata de fazer um juízo definitivo de censura, mas apenas de constatar a existência de um mínimo de embasamento para a deflagração do devido processo legal: “(...) não se exige, na primeira fase da persecutio criminis, que a autoria e a materialidade da prática de um delito sejam definitivamente provadas, uma vez que a verificação de justa causa para a ação penal pauta-se em juízo de probabilidade, e não de certeza” (STJ, HC n. 100.296, rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, 5.ª TURMA, DJe de 01/02/2010).

 

Solução: designa-se outro promotor de justiça para oferecer denúncia, devendo prosseguir nos ulteriores termos da ação penal.

 

 

Cuida-se de procedimento instaurado para apurar a suposta prática do crime de lesão corporal na modalidade violência doméstica (CP, art. 129, §9.º) cometido, em tese, por (...) em face de sua ex-companheira (...).

Encerradas as providências de polícia judiciária, a Douta Promotora de Justiça, ponderando que a vítima declarou seu desinteresse no prosseguimento do feito, e o agente estabeleceu domicílio em outro Estado da Federação, não mais trazendo perigo ao sujeito passivo, entendeu que a sanção penal perdeu o seu objeto. Sob outro prisma, verificar-se-ia a irrelevância jurídica do fato, consoante o princípio da bagatela imprópria; em consequência, requereu o arquivamento do inquérito (fls. 26/29).

O MM. Juiz, contudo, endereçou a questão para análise desta Procuradoria-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fl. 30).

Eis a síntese do necessário.

A razão se encontra com o Digníssimo Magistrado, com a máxima vênia da Ilustre Representante Ministerial; senão, vejamos.

Narrou (...), resumidamente, que conviveu com o averiguado durante aproximadamente seis meses, não tendo filhos, encerrando a desarmoniosa relação porque ele seria muito ciumento.

O indiciado se retirou da residência comum, mas, no dia 17 de novembro de 2012, como possuía a chave, nela adentrou.

Quando a ex-companheira chegou, iniciou-se uma discussão e o investigado a agrediu, dizendo que “ia lhe levar com ele e ela ia ver o que ele ia fazer”.

Alguns vizinhos intervieram, retirando (...) do imóvel, mas ele retornou, pulou o portão e golpeou a ofendida novamente, dirigindo-lhe palavras injuriosas na frente de sua filha de quatro anos (fl. 06/07).

O relatório do atendimento médico prestado a (...) foi encartado a fl. 08.

O autor, contudo, não foi localizado, existindo no expediente a informação de que se mudou para o Estado da Paraíba (fl. 17).

A vítima, prestando declarações em aditamento, manifestou-se no sentido de não mais desejar dar prosseguimento ao feito (fl. 19).

(...), vizinhos dos envolvidos, afirmaram que não presenciaram os fatos, mas ouviram sons no interior da moradia do casal, como panelas e objetos que quebravam, motivo pelo qual o segundo se dirigiu até o local e conversou com (...), acalmando-o e retirando-o da casa (fls. 20/23).

Pois bem.

Há nos autos prova da materialidade, consubstanciada em relatório de atendimento médico e nas declarações vitimárias, bem como indícios suficientes de autoria.

A denúncia, portanto, deve ser ajuizada.

Importa destacar que o fato configura delito de ação penal pública incondicionada, motivo pelo qual se mostra irrelevante a manifestação da ofendida no sentido de não querer ver o agente processado.

O oferecimento da petição inicial, em semelhante contexto, é a medida que se afigura compatível com o princípio da obrigatoriedade da ação penal de iniciativa pública (CPP, art. 24).

O princípio da bagatela imprópria, de duvidosa aplicabilidade, se revela de todo inadmissível, porque importa em admitir ao Poder Judiciário a possibilidade de reconhecer, de modo discricionário, que a imposição da pena fica ao talante do magistrado.

A não aplicação da sanção em decorrência de sua pretensa desnecessidade somente se encontra autorizada quando há expressa autorização legislativa.

É justamente para isso que existe o instituto do perdão judicial, o qual, segundo o Código Penal, é cabível somente quando previsto em lei (art. 107, inc. IX).

Acrescente-se, outrossim, que a legislação brasileira adotou a teoria normativa pura da culpabilidade, opção que repele, de per si, a tese invocada no pedido de arquivamento.

Com efeito, o princípio da bagatela imprópria funda-se na teoria funcionalista da culpabilidade, para a qual a aplicação da pena requer, além do juízo de reprovabilidade, a análise da sua necessidade concreta.

Note-se, ainda, que o multicitado princípio tem como premissa a tese que entende se prestar a pena exclusivamente à prevenção especial, quando, em verdade, seu escopo se dirige igualmente à prevenção geral e à reprovação pelo ato cometido (vide art. 59, caput, do CP).

Registre-se, por não menos oportuno, que, se aplicada a casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher, a ideia de bagatela imprópria vai de encontro com a Lei Maria da Penha e os compromissos internacionais assumidos pelo país no sentido do firme combate à violência de gênero.

Esse tipo de filosofia, em última análise, premia o agressor, e, por derradeiro, foi duramente combatido pela Suprema Corte no julgamento das ADIn 4.424 e ADC 19.

Frise-se, em arremate, que não se trata de fazer um juízo definitivo de censura, mas apenas de constatar a existência de um mínimo de embasamento para a deflagração do devido processo legal. Não é outro, aliás, o entendimento de nossos tribunais:

 

“não se exige, na primeira fase da persecutio criminis, que a autoria e a materialidade da prática de um delito sejam definitivamente provadas, uma vez que a verificação de justa causa para a ação penal pauta-se em juízo de probabilidade, e não de certeza” (STJ, HC n. 100.296, rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, 5.ª TURMA, DJe de 01/02/2010).

 

Diante do exposto, designa-se outro promotor de justiça para oferecer denúncia, acaso persista a Ilustre subscritora do pedido de arquivamento em exercício do cargo, devendo aquele prosseguir nos ulteriores termos da ação penal.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria, se necessário, designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

 São Paulo, 14 de julho de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

/aeal