Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 38.901/15

Autos n.º 0001603-53.2011.8.26.0704 - MM. Juízo da 1.ª Vara Criminal do Foro Regional de Pinheiros (Comarca Capital)

Suscitante: Promotoria de Justiça Criminal de Pinheiros

Suscitado: Promotora de Justiça oficiante perante a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Assunto: subsunção do fato ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO LESÃO CORPORAL QUALIFICADA PELA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (CP, ART. 129, §9.º). CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. CONDUTA PRATICADA POR IRMÃO EM FACE DA IRMÃ. INDÍCIOS DE QUE O COMPORTAMENTO É PERPETRADO DE MODO CONSTANTE E REITERADO. VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONFIGURADA. ATRIBUIÇÃO AFETA AO PROMOTOR DE JUSTIÇA OFICIANTE NA ESFERA DA VARA ESPECIALIZADA.

1.      A Procuradoria-Geral de Justiça vem decidindo, na esteira do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que se deve conferir à Lei n.º 11.340/06 interpretação restritiva. Por esse motivo, não basta tão somente que o sujeito passivo da infração seja do sexo feminino para justificar a incidência da legislação protetiva.

2.      Há casos nos quais a violência de gênero pode ser reconhecida de plano, como ocorre com infrações perpetradas contra mulheres envolvendo pessoas que mantêm ou mantiveram relação amorosa. O mesmo se pode dizer de casos envolvendo estupro de vulnerável cometido contra meninas.

3.      Nas demais situações, tais como as que aludem a irmãos, ascendentes e descendentes, cunhados, tios e sobrinhos, não se reconhece, de regra, situação regida pela Lei Maria da Penha, salvo se houver algum traço indicativo de que o agressor (ou agressora) assume postura de pretensa superioridade, subjugando pessoa(s) do sexo feminino, operando-se a violência de gênero. Nesse sentido, o Enunciado de Entendimento n. 29 desta Procuradoria-Geral de Justiça:CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES – Lei Maria da Penha. A incidência da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) pressupõe situação caracterizadora de violência de gênero, não abrangendo, portanto, todo e qualquer delito cometido contra pessoas do sexo feminino (Protocolados n.ºs 125.268/14 e 139.297/13).

4.      Na hipótese em testilha, se cuida de comportamento reiteradamente cometido pelo investigado, denotando retratar tal modalidade de violência, a ponto de justificar a aplicação da multicitada Lei especial.

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, declarando que a atribuição para oficiar incumbe ao Douto Promotor de Justiça responsável pelos feitos da Lei Maria da Penha.

 

 

Trata-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de lesão corporal na modalidade violência doméstica (CP, art. 129, §9.º) cometido, em tese, por (....) em face de sua irmã (....).

Concluídas as providências de polícia judiciária, a Douta Promotora de Justiça oficiante perante a Vara de Violência Doméstica, não vislumbrando a incidência à espécie da Lei n.º 11.340/06, postulou o envio dos autos ao Juízo competente (fls. 129/132).

A Ilustre Representante Ministerial destinatária, contudo, discordou de sua antecessora, suscitando conflito negativo de atribuição (fls. 206/213).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento da causa a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com a Douta Suscitante, com a máxima vênia da Ilustre Suscitada; senão, vejamos.

Anote-se, de início, que esta Procuradoria-Geral de Justiça possui precedentes nos quais, em situações delituosas envolvendo irmãos, afastou a incidência da Lei Maria da Penha, justamente porque o caso concreto não apresentava qualquer traço peculiar indicativo de violência de gênero.

No feito em testilha, porém, outro é o cenário.

As atitudes concretas de (...), descritas pela vítima e confirmadas pela irmã de ambos (fls. 10/11), (...), traduzem mais do que um isolado entrevero entre familiares, mas clara ação lastreada em dominação de gênero.

(...), (...) e (...) moram em casas vizinhas e dividem o mesmo quintal. Junto com o agressor residem (...), filha da vítima, o companheiro (...) e a filha do casal de um ano e dez meses.

No dia dos fatos, 19 de outubro de 2011, por volta das 20 horas, (...) percebeu que o agressor e (...) ingeriam bebida alcóolica. Sabendo que tal atitude descontentaria a sobrinha, a tia telefonou para avisá-la sobre o acontecido.

(...), a par da situação, dirigiu-se a sua residência, retirou a filha de casa e, em seguida, retornou. Na ocasião, iniciou a discussão com (...), culminando em agressões físicas recíprocas.

(...), então, contatou (...), que foi a socorro da filha. Ao projetar-se em direção à briga, (...) interveio, dizendo que “(...) estava errada e tinhas mais que apanhar mesmo”, e conteve a irmã com um golpe no pescoço (mata-leão), fazendo-a desmaiar por asfixia.

(...), percebendo que a sogra caía desacordada, parou de agredir (...) e ordenou que (...) fizesse o mesmo com a vítima.

Dos depoimentos das mulheres, outrossim, pode-se extrair que o agente é pessoa violenta e que por diversas vezes agrediu as irmãs.

O feito foi arquivado em relação a (...), por ausência de materialidade delitiva, vez que (...) não realizou o exame de corpo de delito. 

Esse cenário revela, da parte de (...), postura de pretensa superioridade, externada em ações criminosas perpetradas contra  mulheres, denotando postura ligada à dominação de gênero, de modo a justificar a aplicação do multicitado Diploma.

Calha à pena citar, nesta ordem de ideias, o escólio de MARIA BERENICE DIAS, que pondera devam os arts. 5.º e 7.º da Lei n. 11.340/06 ser interpretados conjugadamente, a fim de se extrair o conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher:

 

“Primeiro a Lei define o que seja violência doméstica (art. 5º): “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Depois estabelece seu campo de abrangência. A violência passa a ser doméstica quando praticada: a) no âmbito da unidade doméstica; b) no âmbito da família; ou c) em qualquer relação íntima de afeto, independente da orientação sexual” (A Lei Maria da Penha na Justiça – efetividade da Lei n. 11.340/06 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 40).

 

A autora prossegue na análise do citado conceito e afirma:

 

“Não só as esposas, companheiras ou amantes estão no âmbito de abrangência de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o pólo passivo da ação delituosa” (op. cit., pág. 41; grifo nosso).

 

Sob outra vertente, o pressuposto para a subsunção do fato à Lei Maria da Penha é a configuração de violência de gênero, fazendo-se necessário, destarte, detectar a prevalência no sujeito ativo de uma condição de superioridade, subjugando a ofendida.

Nesse sentido, o entendimento da Egrégia 13.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“(...) Nota-se, portanto, que a aplicabilidade da Lei Maria da penha não se limita a casos de “violência doméstica praticada pelo varão contra mulher e prole”.

Para restar configurada a violência doméstica e familiar em face da mulher e, por consequência, se justificar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha ao caso concreto, basta que a vítima seja do gênero feminino e que a conduta tenha sido praticada em determinadas circunstâncias (no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em relação íntima de afeto), sendo irrelevante a identidade do sujeito ativo da agressão.

...”

(TJSP, Apelação n. 990.10.024913-4, Relator Desembargador René Ricupero, j. em 29.07.10).

 

Há, ainda, mais um enfoque a merecer atenção na solução do conflito, posto que a incidência do mencionado Diploma Legal conferirá maior proteção à ofendida, em razão das medidas protetivas de urgência nela previstas e do rigor mais acentuado em suas disposições materiais e processuais.

Depreende-se, portanto, que a opinio delicti deve ser formada no seio da Promotoria de Justiça dedicada ao combate da violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Diante do exposto, conhece-se deste incidente, dirimindo-se-o para declarar competir à Douta Suscitada a atribuição para intervir nos autos.

A controvérsia a respeito da incidência da Lei Maria da Penha, nos termos ora analisados, não colide com eventual opinião delitiva a ser deduzida pelo promotor natural, motivo por que não se afigura necessária a designação de outro membro ministerial para atuar em seu lugar.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155); parêntese nosso.

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 19 de março de 2015.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

/aeal