Conflito Negativo de Atribuição

 

Protocolado n.º 103.421/14

Autos n.º 2.126/11– MM. Juizado Especial Criminal da Comarca de Assis

Suscitante: Promotor de Justiça do Juizado Especial Criminal de Assis

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal de Assis

Assunto: controvérsia acerca da quantidade de infrações penais praticadas, com reflexo na atribuição funcional

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. CONCURSO DE CRIMES OU DELITO ÚNICO. LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR E EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (CTB, ARTS. 303, “CAPUT”, E 306). INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO OU ABSORÇÃO. INEXISTÊNCIA DE “BIS IN IDEM”. MAIOR APENAMENTO DO CRIME DE PERIGO QUE IMPEDE SEJA ELE ABSORVIDO PELA INFRAÇÃO DE DANO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E HISTÓRICA DOS DISPOSITIVOS: REVOGAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA DA LESÃO CULPOSA DECORRENTE DE EMBRIAGUEZ, OPERADA PELA LEI N. 11.705/2008, QUE REFORÇA A CONCLUSÃO DE SE CUIDA DE ILÍCITOS AUTÔNOMOS. ATRIBUIÇÃO AFETA AO DOUTO PROMOTOR DE JUSTIÇA CRIMINAL, EM FACE DA SOMA DAS PENAS COMINADAS.

1. O crime de embriaguez ao volante não pode ser absorvido pela lesão corporal culposa, pois a pena máxima cominada ao crime descrito no art. 306 do CTB é superior à do tipificado no art. 303 do CTB. Não faria sentido, portanto, que a infração de perigo, por ser mais grave, fosse consumida pelo delito de dano, apenado de maneira mais branda.

2. Anote-se que a Lei n.º 11.705/08 revogou expressamente a causa de aumento aplicável à lesão culposa, consistente na direção sob a influência de álcool. Mencionada alteração revela o propósito inequívoco do legislador em reconhecer a plena autonomia entre as infrações analisadas. Não há falar-se, portanto, em bis in idem.

3. A soma das penas máximas cominadas aos ilícitos torna-os de competência do juízo comum, nos termos de entendimento já consagrado por nossa jurisprudência (nesse sentido: STJ, RHC n.º 27.068/SP, 6.ª Turma, rel. Min. OG FERNANDES, DJe de 27/09/2010; HC n.º 143.500/PE, 5.ª Turma, rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 27/06/2011).

Solução: conhece-se do presente conflito, dirimindo-o, a fim de declarar que a atribuição compete ao Douto Promotor de Justiça atuante na Vara Criminal.

 

 

 

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado a partir da lavratura de auto de prisão em flagrante, visando à apuração da suposta prática dos crimes de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (CTB, art. 303) e embriaguez ao volante (CTB, art. 306) cometidos, em tese, por (...).

O Douto Promotor de Justiça inicialmente oficiante, ponderando que o delito de lesão corporal absorve a infração remanescente, postulou a remessa do feito ao Juizado Especial (fl. 50).

O Ilustre Representante Ministerial que o recebeu, todavia, em judiciosa manifestação, discordou de seu antecessor, requerendo o retorno do expediente à origem (fls. 138/145).

A MM. Juíza, entendendo caracterizado um conflito negativo de atribuições, enviou o procedimento para análise desta Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 147/152).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que se encontra devidamente configurado o conflito negativo de atribuição, conforme aventado pela Digníssima Magistrada.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

        Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitante, com a máxima vênia do Ilustre Suscitado; senão, vejamos.

Da narrativa constante do feito infere-se que, no dia 28 de novembro de 2010, (...), conduzindo veículo em estado de embriaguez (conforme exame de dosagem alcoólica encartado a fl. 08, o qual acusou o índice de 1,5 g/l – um grama e cinco decigramas por litro de sangue), colidiu com o automóvel dirigido por (...), que transitava pela via preferencial

Com o embate, o segundo carro capotou, provocando na vítima lesões corporais de natureza leve (consoante o laudo pericial indireto juntado a fl. 124).

A averiguada deixou o local do choque, retornando momentos depois, quando policiais militares já se encontravam no sítio dos acontecimentos (fls. 16 e 17).

Posteriormente, (...) apresentou outra versão dos fatos, alegando que ingerira bebida alcoólica, mas (...) batera em seu veículo (fl. 29), o que foi confirmado por (...) (fls. 26/27).

(...) asseverou que a indiciada não observou o sinal de parada obrigatória, e, em decorrência de seu comportamento, o automóvel guiado pela ofendida chocou-se no daquela e capotou. A agente, após, não cessou seu movimento, seguindo adiante (fl. 43).

Diante de tal quadro é preciso destacar, de início, que o delito capitulado no art. 306 do CTB consubstancia infração de perigo abstrato.

Deve-se frisar que nada há de inconstitucional na construção típica em apreço, em que pese as opiniões contrárias de renomados juristas.

Pondere-se, na esteira dos ensinamentos de Fernando Capez, que são válidos e constitucionais os crimes de perigo presumido. Com efeito, ensina o autor que:

 

“...subsiste a possibilidade de tipificação dos crimes de perigo abstrato em nosso ordenamento legal, como legítima estratégia de defesa do bem jurídico contra agressões em seu estágio ainda embrionário, reprimindo-se a conduta, antes que ela venha a produzir um perigo concreto ou um dano efetivo. Trata-se de cautela reveladora de zelo do Estado em proteger adequadamente certos interesses. Eventuais excessos podem, no entanto, ser corrigidos pela aplicação do princípio da proporcionalidade” (Curso de direito penal, vol. 1, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 25).

 

Não é menos relevante anotar que, cientifica e estatisticamente, já se demonstrou que o fato de o motorista encontrar-se com determinado nível de álcool (ou substância psicoativa) em seu sangue reduz consideravelmente seus reflexos e percepção, provocando risco efetivo a ele próprio e a todos os demais que se encontram ao seu redor.

Assim, não resta infringido o princípio da ofensividade, na medida em que a conduta não produziria, de per si, riscos aos valores maiores (vida e integridade corporal) salvaguardados por nossa Constituição.

É de ver, ainda, que o crime de embriaguez ao volante não pode ser absorvido pela lesão corporal culposa. Isto porque a pena máxima cominada ao crime do art. 306 do CTB é superior à do art. 303 do CTB.

         Anote-se que a Lei n.º 11.705/08 revogou expressamente a causa de aumento aplicável à lesão culposa, consistente na direção sob a influência de álcool. Mencionada alteração revela o propósito inequívoco do legislador em reconhecer a plena autonomia entre as infrações penais analisadas.

Não há falar-se, portanto, em consunção.

Houve, portanto, concurso de crimes e, neste caso, a competência deve ser firmada com base no total das penas impostas. Confira-se, a respeito do tema, os venerandos acórdãos das Colendas 5.ª e 6.ª Turmas do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

 

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. PENA MÁXIMA EM ABSTRATO, MAJORADA PELA CONTINUIDADE DELITIVA, ACIMA DE DOIS ANOS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO COMUM.

1.     A Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, traz em seu art. 2º, parágrafo único, que devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei nº 9.099/95, aqueles a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa, sem exceção. Entretanto, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, se em virtude da exasperação a pena máxima for superior a 2 (dois) anos, fica afastada a competência do Juizado Especial Criminal.

2.      No caso, o delito previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, tem como pena máxima dois anos de detenção, devendo ser considerada, ainda, a majoração pela continuidade delitiva, conforme o art. 71 do CP. Assim, de acordo com o entendimento desta Corte Superior, compete ao Juízo Comum processar e julgar os crimes apurados nestes autos, pois somadas as penas, estas ultrapassam o limite estabelecido como parâmetro para fins de fixação da competência para o julgamento das infrações de menor potencial ofensivo cometidas em concurso de crimes.

3. Recurso a que se nega provimento.”  

(STJ, RHC n. 27.068/SP, 6.ª Turma, rel. Min. OG FERNANDES, DJe de 27/09/2010).

HABEAS CORPUS PREVENTINO. INJÚRIA, CALÚNIA E DIFAMAÇÃO. CONCURSO DE CRIMES. COMPETÊNCIA DEFINIDA PELA SOMA DAS PENAS MÁXIMAS COMINADAS AOS DELITOS. JURISPRUDÊNCIA DESTE STJ. PENAS SUPERIORES A 2 ANOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA ORDEM. ORDEM CONCEDIDA PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA O PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DA CAUSA.

1. É pacífica a jurisprudência desta Corte de que, no caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de fixação da competência do Juizado Especial Criminal será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas aos delitos; destarte, se desse somatório resultar um apenamento superior a 02 (dois) anos, fica afastada a competência do Juizado Especial.

2. No caso dos autos imputa-se ao paciente a prática de crimes de calúnia, injúria e difamação cuja soma das penas ultrapassa o limite apto a determinar a competência do Juizado Especial Criminal.

3. Parecer do MPF pela concessão da ordem.

4. Ordem concedida.” 

(STJ, HC n. 143.500/PE, 5.ª Turma, rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 27/06/2011).

 

Diante do exposto, conhece-se do presente conflito, para declarar que a atribuição para oficiar nos autos incumbe ao Douto Suscitado.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, designo outro Promotor de Justiça para atuar no feito, facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

       São Paulo, 17 de julho de 2014.

 

 

 

                                  Márcio Fernando Elias Rosa

        Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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