Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 118.879/15

Autos n.º 0000429-66.2012.8.26.0318 – MM. Juízo da 2.ª Vara Criminal da Comarca de Campinas

Suscitante: 24.º Promotor de Justiça de Campinas

Suscitada: 2.º Promotor de Justiça de Leme

Assunto: definição do correto enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. FURTO QUALIFICADO PELO ABUSO DE CONFIANÇA (CP, ART. 155, §4.º, INC. II) OU ESTELIONATO (CP, ART. 171, “CAPUT”). INDICIADO QUE SUBTRAIU O CARTÃO MAGNÉTICO DA OFENDIDA, CIENTE DA RESPECTIVA SENHA E, EM OUTROS MUNICÍPIOS, EFETUOU DIVERSOS SAQUES ORIUNDOS DA CONTA-CORRENTE DO SUJEITO PASSIVO. O APODERAMENTO DO CARTÃO CONSTITUI MEIO PARA A RETIRADA DA QUANTIA, DEVENDO A REALIZAÇÃO INTEGRAL POR ESTA SE PAUTAR. INEXISTÊNCIA DE ESTELIONATO, HAJA VISTA NÃO TER OCORRIDO EMPREGO DE FRAUDE, MAS DE FURTO COM ABUSO DE CONFIANÇA. ATRIBUIÇÃO AFETA AO DOUTO SUSCITADO.

1.     Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar a conduta do indiciado, o qual, mediante abuso de confiança, subtraiu o cartão magnético da ofendida, efetuando diversos saques de sua conta corrente, em datas e locais distintos.

2.     O autor, ademais, gozava da confiança da ofendida, pois, na condição de inquilino desta, se dispunha a auxiliá-la em suas compras, ocasião em que descobriu sua senha eletrônica.

3.     Concluídas as providências de polícia judiciária, o Douto Promotor de Justiça de Leme classificou a conduta como estelionato e, tendo em vista que os saques foram efetuados, em sua maioria, na Comarca de Campinas, para este foro requereu o envio dos autos.

4.     O Ilustre Representante Ministerial recipiente, contudo, ponderou tratar-se de furto qualificado, motivo pelo qual a conduta se realizara integralmente no foro correspondente ao local da subtração, isto é, aquele em que sediada a agência bancária de onde provieram os valores. Suscitou, destarte, conflito negativo de atribuição.

5.     Deve-se notar que o caso concreto não retrata crime de estelionato, pois inexistiu o emprego de fraude apta a fazer com que o sujeito passivo, induzido ou mantido em erro, entregasse o bem voluntariamente ao sujeito ativo.

6.     Em verdade, o autor, aproveitando-se da especial relação de confiança que mantinha com a vítima, logrou subtrair seu cartão magnético e, ciente da respectiva senha eletrônica, efetuou diversos saques bancários, provocando expressivo desfalque financeiro.

7.     Houve, deve-se destacar, crime progressivo, em que o sujeito ativo, desde o início do iter criminis, se propõe a realizar um delito-fim, tendo que, para tanto, praticar um crime, o qual atua como meio necessário à sua concretização.

8.     Aplica-se, nesta ordem de ideais, o princípio da consunção ou da absorção, devendo o averiguado responder pela infração subjetivamente visada (meta optata), cujo summatum opus se verificou em Campinas.

9.     O furtum, como é cediço, consuma-se no momento da inversão do ânimo da posse da res furtivae (no caso, o dinheiro sacado), ou, em outras palavras, no instante em que o sujeito passivo (titular do patrimônio) perde o poder de disposição de seus bens.

10. No caso em tela, a análise da dinâmica dos fatos demonstra que a realização integral do tipo ocorreu, inequivocamente, em Campinas, local onde vítima mantém sua conta.

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, no sentido de declarar que a atribuição incumbe ao Douto Suscitado, designando-se outro promotor de justiça de modo a preservar sua independência funcional.

 

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar a conduta de (...), o qual subtraiu o cartão magnético da ofendida, efetuando diversos saques de sua conta corrente, em datas e locais distintos.

O autor, ademais, gozava de especial confiança da ofendida, desta se aproveitando, pois, na condição de inquilino dela, se dispunha a auxiliá-la em suas compras e em outros afazeres, ocasião em que descobriu sua senha eletrônica.

Concluídas as providências de polícia judiciária, o Douto Promotor de Justiça de Leme classificou a conduta como estelionato e, tendo em vista que os saques foram efetuados, em sua maioria, na Comarca de Campinas, para este foro requereu o envio dos autos (fls. 158/159).

O Ilustre Representante Ministerial recipiente, contudo, ponderou tratar-se de furto qualificado, motivo pelo qual a conduta se realizara integralmente no foro correspondente ao local da subtração, isto é, aquele em que sediada a agência bancária de onde provieram os valores.

Suscitou, destarte, conflito negativo de atribuição (fls. 164/167).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento da questão para análise desta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitante, com a máxima vênia do Ilustre Suscitado; senão, vejamos.

Deve-se notar que o caso concreto não retrata crime de estelionato, pois inexistiu o emprego de fraude apta a fazer com que o sujeito passivo, induzido ou mantido em erro, entregasse o bem voluntariamente ao sujeito ativo.

Em verdade, o autor, aproveitando-se da especial relação de confiança que mantinha com a vítima, logrou subtrair seu cartão magnético e, ciente da respectiva senha eletrônica, efetuou diversos saques bancários, provocando um desfalque de R$ 39.000,00 (trinta e nove mil reais).

Houve, deve-se destacar, crime progressivo, em que o sujeito ativo, desde o início do iter criminis, se propõe a realizar um delito-fim, tendo que, para tanto, praticar um crime, o qual atua como meio necessário à sua concretização.

Aplica-se, nesta ordem de ideais, o princípio da consunção ou da absorção, devendo o averiguado responder pela infração subjetivamente visada (meta optata), cujo summatum opus se verificou em Campinas.

O furtum, como é cediço, consuma-se no momento da inversão do ânimo da posse da res furtivae (no caso, o dinheiro sacado), ou, em outras palavras, no instante em que o sujeito passivo (titular do patrimônio) perde o poder de disposição de seus bens.

Nesse sentido orientam-se nossos tribunais:

 

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. 1. ALEGAÇÃO DE NÃO APLICAÇÃO AO FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO DE AGENTES DA PENA DE 2 A 8 ANOS DE RECLUSÃO PREVISTA NO ART. 155, § 4º, INC. IV, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE ANALOGIA PELO JULGADOR. 2. MOMENTO DA CONSUMAÇÃO DO FURTO. 3. NÃO OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM.

1. O Supremo Tribunal Federal decidiu não ser possível ao julgador, por analogia, estabelecer sanção que não esteja prevista em lei, mesmo que em benefício do réu, devendo ser aplicado o tipo específico do art. 155, § 4º, inc. IV, do Código Penal. Precedentes.

2. A consumação do furto ocorre no momento em que o agente tem a posse da res furtiva, cessada a clandestinidade, independente da recuperação posterior do bem objeto do delito.

3. Não há falar em bis in idem quando a reincidência foi utilizada apenas como agravante do art. 61, inc. I, do Código Penal na segunda fase de aplicação da pena, não tendo sido apreciada como circunstância judicial de maus antecedentes para fixação da pena-base.

4. Habeas corpus denegado”.

(STF, HC n. 95.398, rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, 1ª Turma, julgado em 04/08/2009)

 

“PENAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO. CONSUMAÇÃO. POSSE MANSA E PACÍFICA. DESNECESSIDADE. CONSUMAÇÃO CONFIGURADA QUANDO DA SAÍDA DO BEM DA ESFERA DE VIGILÂNCIA DA VÍTIMA. ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. SUBTRAÇÃO DE OBJETO NO INTERIOR DO VEÍCULO. QUALIFICADORA PRESENTE. FURTO PRIVILEGIADO. PEQUENO VALOR DA COISA FURTADA. INDIFERENÇA. INCOMPATIBILIDADE COM O FURTO QUALIFICADO. RECURSO PROVIDO.

1. "Considera-se consumado o crime de furto com a simples posse, ainda que breve, do bem subtraído, não sendo necessário que (...) se dê de forma mansa e pacífica, bastando que cesse a clandestinidade" (REsp 939.837/RS).

2. O rompimento de obstáculo para furtar o bem pretendido qualifica o delito do art. 155 do CP.

3. É firme a orientação deste Tribunal no sentido de que, para a incidência do privilégio inscrito no § 2º do art. 155 do Código Penal, é imperativo não incidir, à espécie, nenhuma das hipóteses qualificadoras do crime de furto, em que prevalece o desvalor da ação.

4. Recurso provido para, reconhecendo a qualificadora do rompimento do obstáculo e a consumação, reformar o acórdão e condenar o recorrido pelo crime do art. 155, § 4º, I, do CP”.

(STJ, R.Esp. n. 1.112.926, rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, 5ª Turma, DJe de 03/11/2009)

 

No caso em tela, a análise da dinâmica dos fatos demonstra que a realização integral do tipo ocorreu, inequivocamente, em Campinas, local onde vítima mantém sua conta.

Diante do exposto, conhece-se deste incidente e dirime-se-o, para declarar que a atribuição para intervir na causa incumbe ao Ilustre Suscitado.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, já que a presente decisão colide com sua opinio delicti, designa-se outro promotor de justiça para atuar na causa, requerendo o que de direito.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático. 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 24 de agosto de 2015.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

                                                                                

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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