Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 125.268/14

Autos n.º 1.872/14 – MM. Juízo da 1.ª Vara Criminal do Foro Regional de Santana

Suscitante: Promotoria de Justiça Criminal do Foro Regional de Santana

Suscitada: Promotoria de Justiça da Vara Regional Norte de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital

Assunto: subsunção do fato ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. LESÃO CORPORAL DOLOSA LEVE QUALIFICADA PELA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (CP, ART. 129, §9.º). DELITO PERPETRADO PELA GENITORA EM FACE DA FILHA, DURANTE DISCUSSÃO FAMILIAR. INEXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO CARACTERIZADORA DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO. INAPLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/06)

1.     O tema central da controvérsia entre os promotores de justiça diz respeito a saber se a conduta da autora, ao ofender a integridade corporal de sua filha (de vinte e sete anos de idade) durante discussão familiar, se subsume ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher, conforme dispõe a Lei n. 11.340/06 e, via de consequência, se a atribuição para atuar na causa deve ficar sob a responsabilidade do órgão do Parquet oficiante na esfera do Juízo Criminal Comum ou no âmbito da Vara Regional Norte de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

2.     Na hipótese concreta, não há qualquer dado fático que possa indicar cuidar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero. Deve-se acentuar que o Diploma acima citado enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência, seja física, econômica ou de qualquer natureza.

3.     Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial não se justifica pura e simplesmente porque uma pessoa do sexo feminino figurou como vítima, mas, além disso, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de se outorgar a especial proteção à mulher atingida no contexto doméstico ou familiar. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir em diversos julgados (CC n. 88.027, rel. Min. OG FERNANDES, 3ª SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008; CC 96.533, rel. Min. OG FERNANDES, 3ª SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 05/02/2009).

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, a fim de declarar que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Promotor de Justiça em exercício no âmbito do Juízo Comum.

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de lesão corporal qualificada (CP, art. 129, §9.º) cometido, em tese, por (...) em face de sua filha (...).

Isto porque, no dia 23 de outubro de 2013, ambas discutiram porquanto a indiciada teria doado bens da vítima sem sua autorização, e durante o desentendimento (...) segurou o pescoço de (...) com uma das mãos e com a outra a feriu com uma faca, provocando-lhe lesões corporais de natureza leve (consoante o laudo pericial encartado a fl. 15).

A ofendida, posteriormente, manifestou seu desinteresse no prosseguimento do feito.

Encerradas as providências inquisitivas, a Douta Promotora de Justiça oficiante perante a Vara Especializada pugnou a remessa do procedimento ao MM. Juízo Comum, por não vislumbrar na espécie hipótese de incidência da Lei Maria da Penha (fl. 22).

O Ilustre Órgão do Parquet destinatário discordou de sua antecessora, postulando fosse suscitado conflito de jurisdição (fls. 28/30).

A MM. Juíza, contudo, entendeu caracterizado conflito de atribuição, remetendo a questão para análise desta Procuradoria-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fl. 31).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que se encontra devidamente configurado o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça, como aventado pela Digna Magistrada.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

Com a devida vênia do Ilustre Suscitante, não lhe assiste razão; senão, vejamos.

O comportamento perpetrado, em nosso sentir, não se enquadra no conceito de violência doméstica e familiar previsto na Lei n. 11.340/06.

Isto porque não há qualquer dado fático que possa indicar cuidar-se de conduta criminosa na qual houve violência de gênero, mas apenas uma discussão familiar.

Versa a hipótese sobre a apuração do ato praticado por (...) quando, durante um desentendimento com sua filha (...), a agrediu.

Acentue-se, nesta ordem de ideias, que o Texto Normativo acima citado enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência, seja física, econômica ou de qualquer natureza.

Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial não se justifica pura e simplesmente porque uma pessoa do sexo feminino figurou como vítima, mas, além disso, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de se outorgar a especial proteção ao sujeito passivo. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir nos seguintes julgados:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. CRIME CONTRA HONRA PRATICADO POR IRMÃ DA VÍTIMA. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito contra honra, envolvendo irmãs, não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica.

(...)”.

(CC 88.027/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008; grifo nosso)

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AGRESSÕES MÚTUAS ENTRE NAMORADOS SEM CARACTERIZAÇÃO DE SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE DA MULHER. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas entre namorados não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade.

(...)

3. No caso, não fica evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha. Sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas o ciúmes da namorada, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06.

(...)”.

(CC 96.533/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe 05/02/2009; grifo nosso)

 

“CRIMINAL. HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 41 DA LEI Nº 11.340/06. NÃO VERIFICAÇÃO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RELAÇÃO FAMILIAR. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA. INTERPRETAÇÃO LITERAL DA NORMA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E CONCEDIDA.

(...)

IV. Para a aplicação da Lei Maria da Penha, é necessária a demonstração da motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima. Precedentes.

V. Embora o inciso II, do art. 5º, da Lei nº 11.340/06 disponha que a violência praticada no âmbito da família atrai a incidência da Lei Maria da Penha, tal vínculo não é suficiente, por si só, a ensejar a aplicação do referido diploma, devendo-se demonstrar a adequação com a finalidade da norma, de proteção de mulheres na especial condição de vítimas de violência e opressão, no âmbito de suas relações domésticas, íntimas ou do núcleo familiar, decorrente de sua situação vulnerável.

(...)”.

(HC 176.196/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, 5.ª TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe de 20/06/2012; grifos nossos)

 

HABEAS CORPUS  IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. AMEAÇA. SOGRA E NORA. 3. COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE. LEI MARIA DA PENHA. ABRANGÊNCIA DO CONCEITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. RELAÇÃO DE INTIMIDADE AFETIVA. 4. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. 5. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.

(...)

2. A incidência da Lei nº 11.340/2006 reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade. Precedentes.

3. No caso não se revela a presença dos requisitos cumulativos para a incidência da Lei nº 11.340/06, a relação íntima de afeto, a motivação de gênero e a situação de vulnerabilidade. Concessão da ordem.

(...)

(HABEAS CORPUS n.º 175.816/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 5.ª TURMA, julgado em 20/06/13, DJe 28/06/13; grifos nossos).

 

Nesse sentido, também dispõe o Enunciado de Entendimento n.º 16 desta Procuradoria-Geral de Justiça:

 

“CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES. LEI MARIA DA PENHA. A incidência da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) pressupõe situação caracterizadora de violência de gênero, não abrangendo, portanto, todo e qualquer delito cometido contra pessoas do sexo feminino” (Protocolado nº 23.989/13).

 

Diante do exposto, conhece-se deste incidente para dirimi-lo, declarando competir ao Douto Suscitante a atribuição para intervir nos autos.

A controvérsia a respeito da incidência da Lei Maria da Penha, nos termos ora analisados, não colide com eventual opinião delitiva a ser deduzida pelo promotor natural, motivo por que não se afigura necessária a designação de outro membro ministerial para atuar em seu lugar.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155; parêntese nosso.)

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 27 de agosto de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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