Conflito Negativo de Atribuição
Protocolado n.º
125.389/11
Autos n.º 3.210/11
– MM. Juízo do Juizado Especial Criminal do Foro Regional da Lapa
Suscitante: Promotoria
de Justiça do Juizado Especial Criminal da Lapa
Suscitada:
Promotoria de Justiça Criminal do Foro Central da Capital
Assunto: juízo
competente para apuração de tentativa de furto privilegiado
Ementa:
Conflito negativo de atribuições. Furto privilegiado tentado (CP, art. 155,
§2º, c.c. art. 14, II). Infração penal de menor potencial ofensivo. Atribuição
da Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal.
1. Dentre os benefícios previstos em lei para o furto privilegiado, o menos favorável ao agente consiste na substituição da pena de reclusão pela de detenção. Referida benesse, com a Reforma da Parte Geral havida em 1984, tornou-se inócua, tanto assim que não tem qualquer aplicação prática.
3. Com a revogação tácita do benefício consistente em substituição da reclusão pela detenção, a pena máxima do furto privilegiado passa a ser de dois anos e oito meses. Na hipótese de tentativa, incidirá outra causa de redução (CP, arts. 14, II, e 68, par. ún.), o que tornará o fato crime de menor potencial ofensivo.
Solução: conflito dirimido para declarar que a atribuição para oficiar nos autos incumbe à i. Suscitante, isto é, à Promotoria dos Juizados Especiais Criminais.
Cuida-se de conflito negativo de atribuições em que os Doutos Representantes Ministeriais em exercício na Promotoria de Justiça Criminal da Capital e na Promotoria do Juizado Especial Criminal do Foro Regional da Lapa divergem acerca do juízo competente para apuração de furto privilegiado tentado (CP, art. 155, §2.º, c.c. art. 14, II).
É o relatório.
Há de se sublinhar, preliminarmente, que o encaminhamento do expediente a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.
Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.
Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).
Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso, de modo que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe o dever de oficiar nos autos.
Pois bem.
A questão, segundo nos parece, requer uma análise pormenorizada do dispositivo legal supracitado, inclusive por conta de decisões anteriores (e em sentido diverso da presente) proferidas pela Procuradoria-Geral de Justiça.
1. Traços distintivos entre
reclusão e detenção – a crescente tendência à unificação das penas privativas
de liberdade
A história do Direito Penal Positivo brasileiro, há
mais de um século, tem sido a da progressiva eliminação das diferenças entre as
espécies de pena privativa de liberdade, notadamente a reclusão e a detenção.
No início do século, quando vigorava o Código Penal
de
Quando da edição do Código Penal, em 1940, manteve-se
a dicotomia, estabelecendo-se a reclusão como a mais grave, distanciando-se da
detenção porque: “1º) em regra, não admite a suspensão condicional; 2º)
comporta período inicial de isolamento diurno e remoção para colônia; 3º) o
trabalho não pode ser escolhido; 4º) implica penas acessórias e medidas de
segurança mais importantes e assíduas” (idem, ibidem, pág. 75).
Em 1984, por ocasião da Reforma da Parte Geral, os
juristas que compuseram a Comissão responsável pela elaboração do Anteprojeto,
ponderaram a respeito da manutenção dos traços distintivos, entendendo por bem
mantê-los, embora em menor número.
Eis o registro de RENÉ ARIEL DOTTI:
“Já ao tempo da elaboração do Código Penal brasileiro da Primeira República, manifestavam-se as tendências de unificação das modalidades de privação da liberdade, por influência da doutrina e de encontros internacionais como os Congressos Penitenciários de Estocolmo (1878), de Paris (1895) e de Praga (1930). Entre nós, uma proposta apresentada ao Ministro da Justiça, em 1972, visando a revisão de textos do Código Penal de 1969 no Título “Das penas”, recomendava a adoção de uma só pena privativa de liberdade: a prisão. O Anteprojeto foi elaborado por uma Comissão integrada por Manoel Pedro Pimentel, Azevedo Franceschini, Prestes Barra, Limongi Neto e Penteado de Moraes (in Manoel Pedro Pimentel, Estudos e pareceres de direito penal, 1973, pág. 24). A pena unitária de prisão foi instituída nos Códigos Penais da Alemanha ocidental (§38) e de Portugal (art. 40º) bem como no Código Penal Tipo para a América Latina (art. 42). Recentemente, assim também o fez o Código Penal do Panamá (1982, art. 46, 1). (...). Mais de uma vez nos manifestamos a favor da pena unitária de prisão (Bases e alternativas ao sistema de penas, Curitiba, 1980, pág. 126). Mas a razão exclusiva dessa reivindicação tinha como causa os “desvios e abusos na execução da pena de prisão” (Bases e alternativas, cit., pág. 129 e s.), posto que “inexiste diferença entre ambas (reclusão e detenção) na fase de cumprimento, o mesmo sucedendo com a prisão simples...” (“O novo sistema de penas”, “in” Reforma Penal, 1985, São Paulo: Saraiva, págs. 95-96).
No sistema do Código Penal, hodiernamente,
reduziram-se ainda mais as diferenças. Estas remanescem no tocante ao regime
inicial de cumprimento de pena (CP, art. 33), na possibilidade de imposição do
efeito secundário da condenação, consistente na incapacidade para o exercício
do poder familiar, tutela ou curatela (CP, art. 92) e na espécie de medida de
segurança aplicável ao fato (art. 97, caput, do CP).
No âmbito da legislação processual, ademais,
verifica-se com maior ênfase a tendência à unificação.
A Lei n. 11.719/08, ao reformular os procedimentos
comuns (ordinário e sumário), estabeleceu que estes se distinguem com base na
quantidade (pena máxima de quatro anos) e não mais a partir da qualidade da
prisão (reclusão ou detenção).
O mesmo se viu na recente Lei n. 12.403/11,
originada do Projeto de Lei n. 4.208, de 2001, responsável pela alteração do Título
IX, do Livro I, do Código de Processo Penal, modernizando o tratamento da
prisão processual e, ao fazê-lo, eliminando qualquer relevância no que diz
respeito à espécie da pena privativa de liberdade para fins de prisão
preventiva ou cabimento de fiança.
O art. 155, §2.º, do Código Penal dispõe que:
“Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”.
O menor benefício decorrente do privilégio,
portanto, consiste na substituição da pena de reclusão pela de detenção.
O
que provocaria, em termos concretos, a concessão dessa benesse?
Para responder, é preciso recordar os traços
distintivos entre as espécies de pena privativa de liberdade: (i) o regime
inicial, (ii) a incapacidade para exercer o poder familiar, etc. e (iii) a
medida de segurança aplicável.
O efeito secundário da condenação consistente em
impedir o exercício do poder familiar, tutela ou curatela tem reduzidíssima
aplicação, haja vista que requer delito cometido contra filho, tutelado ou
curatelado. Ao menos na primeira hipótese, em que o sujeito passivo é
descendente do autor, o fato não será punível, em decorrência da isenção de
pena prevista no art. 181 do CP.
Deve-se considerar, ainda, que na imensa maioria
dos casos, o sujeito ativo da infração é penalmente imputável, o que afasta, de
maneira absoluta, a terceira diferença.
Percebe-se, então, que a substituição da reclusão
pela detenção, em termos práticos, impedirá o sujeito de iniciar o cumprimento
da pena em regime fechado. Dir-se-á que esta é uma diferença relevante; ocorre,
entretanto, que a aplicação do privilégio pressupõe que o agente seja
primário, situação na qual, de regra, somente se admitirá o regime aberto.
A inarredável conclusão, destarte, é que o
benefício consistente em substituir a pena de reclusão pela de detenção, na
verdade, é irrelevante.
3. Revogação tácita da benesse
em questão
Conclui-se, destarte, que, desde a Reforma da Parte
Geral promovida em 1984 e tendo em vista a constante tendência pela unificação
da pena de reclusão e de detenção, encontra-se tacitamente revogado o benefício
consistente em substituir uma pena de prisão por outra ao furto privilegiado.
4. Furto privilegiado
tentado é infração de menor potencial ofensivo
O privilegium no furto, destarte, permitirá
ao agente ter a pena reduzida de um a dois terços ou receber, tão somente, a
pena de multa.
Entre essas benesses, a menos favorável é, sem
dúvida, a primeira. Pode-se dizer, então, que a pena máxima do furto
privilegiado consumado é a do tipo básico (quatro anos de reclusão), reduzida
no patamar mínimo (um terço), o que totaliza dois anos e oito meses de
reclusão.
Na hipótese de conatus,
incidirá, por força do art. 14, par. ún., c.c. art. 68, par. ún., ambos do CP,
uma segunda causa de diminuição, a qual, aplicada no piso (um terço), fará com
que a pena máxima a que fica sujeito o autor do fato seja inferior a dois
anos.
A infração penal, portanto, inserir-se-á na esfera
de competência dos Juizados Especiais Criminais, ex vi do art. 61 da Lei
n. 9.099/95.
5. Dimensão econômica do bem de “pequeno valor”
Frise-se, derradeiramente, que o critério
jurisprudencial para aplicação do privilégio, notadamente com vistas ao
conceito de “pequeno valor”, corresponde ao salário mínimo vigente ao tempo do
fato; confira-se:
“HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA. FURTO SIMPLES. PRIVILÉGIO DO § 2º DO ART. 155 DO CP. PRIMARIEDADE E RES FURTIVA DE PEQUENO VALOR. CRITÉRIO DE AFERIÇÃO DO VALOR. SALÁRIO MÍNIMO. REQUISITOS LEGAIS DEVIDAMENTE PREENCHIDOS. APLICAÇÃO DO REDUTOR QUE SE IMPÕE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. Consoante precedentes
deste STJ, o salário mínimo vigente ao tempo do delito pode ser adotado, a
princípio, como parâmetro para fins de caracterização do furto privilegiado.
(...)
(STJ, HC n. 120.757/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, 5.ª Turma, julgado em 04/02/2010, DJe de 15/03/2010).
O acórdão colacionado na manifestação de fls. 50/53
trata de questão diversa, consistente nos parâmetros de fixação do alcance da
noção de “insignificância penal” (que evidentemente não se confunde com a ideia
de “pequeno valor”).
6. Conclusão
Diante do exposto, conheço do presente conflito
para dirimi-lo, declarando que a atribuição para atuar no feito incumbe à
Ilustre Suscitante.
Para que não haja qualquer menoscabo à sua independência
funcional, designo outro promotor de justiça para oficiar nos autos,
facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302
(PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo
n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.
Expeça-se portaria designando o substituto
automático. Publique-se a ementa.
São Paulo, 13 de setembro de
2011.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
/aeal