Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 142.542/14

Autos n.º 0048155-17.2012 - MM. Juízo da Vara Regional Norte de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital

Suscitante: Promotoria de Justiça da Vara Regional Norte de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal do Foro Regional de Santana

Assunto: definição da incidência da Lei Maria da Penha à espécie, com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. MAUS-TRATOS CIRCUNSTANCIADO (CP, ART. 136, §3.º). CONDUTA PERPETRADA, EM TESE, POR GENITOR EM FACE DE SUA FILHA. INEXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO CARACTERIZADORA DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO. INAPLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/06)

1.     A divergência estabelecida na causa diz respeito a definir se a atribuição para nela oficiar incumbe ao Promotor de Justiça Criminal ou ao Representante Ministerial em exercício no Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital.

2.     Cuida-se o procedimento de suposto delito de maus-tratos agravado (CP, art. 136, §3.º) cometido, em tese, por genitor em face de sua filha.

3.     Nota-se que o elemento identificador da fragilidade do sujeito passivo não reside em seu sexo, mas em sua idade, pois se trata de criança com sete anos à época dos fatos, sob o jugo do poder familiar.

4.     Na hipótese concreta, portanto, não há dado fático que possa indicar tratar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero. A Lei Maria da Penha enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência decorrente da dominação histórica e social entre gêneros.

5.     Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial não se justifica pura e simplesmente porque uma pessoa do sexo feminino figurou como vítima, mas, além disso, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de se outorgar a especial proteção à mulher atingida no contexto doméstico ou familiar. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir em diversos julgados (CC n. 88.027, rel. Min. OG FERNANDES, 3.ª SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008; CC 96.533, rel. Min. OG FERNANDES, 3.ª SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 05/02/2009; HC n.º 175.816/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 5.ª TURMA, julgado em 20/06/13, DJe de 28/06/13).

6.     No mesmo sentido, o Enunciado de Entendimento desta Procuradoria-Geral de Justiça: “CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES. LEI MARIA DA PENHA. A incidência da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) pressupõe situação caracterizadora de violência de gênero, não abrangendo, portanto, todo e qualquer delito cometido contra pessoas do sexo feminino” (Protocolados n.ºs 125.268/14 e 139.297/13).

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, a fim de declarar que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Promotor de Justiça em exercício no âmbito do Juízo Comum.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de maus tratos qualificado (CP, art. 136, §3.º) cometido, em tese, por (...), quando, no dia 29 de junho de 2012, atingiu sua filha (...) com golpes de chinelo, provocando-lhe a lesão corporal de natureza leve descrita no laudo pericial de fl. 11 e retratada nas fotos encartadas a fls. 28/32.

O fez, segundo alegou, com o objetivo de corrigir a conduta da menina, pois ela teria mentido para ele.

Encerradas as providências inquisitivas, o Douto Promotor de Justiça, entendendo configurada hipótese de incidência da Lei n.º 11.340/06, postulou o envio do feito à Vara Especializada (fl. 36), pleito este deferido (fl. 37).

O Ilustre Representante Ministerial designado que o recebeu, contudo, discordando de seu antecessor, por não vislumbrar na causa violência de gênero, requereu fosse suscitado conflito negativo de jurisdição (fls. 40/41).

A Colenda Câmara Especial do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo não conheceu do incidente, determinando o retorno dos autos à origem (fls. 63/68), onde instaurado o instituto (fl. 73).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do expediente a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

Assiste razão à Douta Suscitante, com a máxima vênia do Ilustre Suscitado; senão, vejamos.

Conforme se revelou, (...) golpeou (...) com chinelo, porquanto a filha teria mentido para ele.

Não há, in casu, qualquer dado fático que possa indicar cuidar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero.

Na hipótese em testilha, o elemento identificador da fragilidade do sujeito passivo não reside em seu sexo, mas em sua idade à época do ocorrido.

Acentue-se, nesta ordem de ideias, que a Lei Maria da Penha enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência, seja física, econômica ou de qualquer natureza.

Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial não se justifica pura e simplesmente porque uma pessoa do sexo feminino figurou como vítima, mas, além disso, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de se outorgar a especial proteção ao sujeito passivo. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir nos seguintes julgados:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. CRIME CONTRA HONRA PRATICADO POR IRMÃ DA VÍTIMA. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito contra honra, envolvendo irmãs, não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica.

(...)”.

(CC 88.027/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008; grifo nosso)

“CRIMINAL. HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 41 DA LEI Nº 11.340/06. NÃO VERIFICAÇÃO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RELAÇÃO FAMILIAR. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA. INTERPRETAÇÃO LITERAL DA NORMA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E CONCEDIDA.

I. O pedido de trancamento da ação penal não foi submetido ao crivo do órgão colegiado do Tribunal a quo, de modo que não pode ser conhecido por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância.

II. A Constituição Federal, ao definir a competência dos juizados especiais, não definiu a expressão "infrações penais de menor potencial ofensivo", cabendo ao legislador ordinário tal delimitação. Precedentes.

III. Hipótese cujo mérito é afastar a aplicação da Lei Maria da Penha em suposta lesão corporal praticada por tia contra sobrinha que não residia no mesmo domicílio.

IV. Para a aplicação da Lei Maria da Penha, é necessária a demonstração da motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima. Precedentes.

V. Embora o inciso II, do art. 5º, da Lei nº 11.340/06 disponha que a violência praticada no âmbito da família atrai a incidência da Lei Maria da Penha, tal vínculo não é suficiente, por si só, a ensejar a aplicação do referido diploma, devendo-se demonstrar a adequação com a finalidade da norma, de proteção de mulheres na especial condição de vítimas de violência e opressão, no âmbito de suas relações domésticas, íntimas ou do núcleo familiar, decorrente de sua situação vulnerável.

VI. A previsão de aplicação da Lei nº 11.340/06 à violência praticada no âmbito da unidade doméstica, do mesmo modo, não almeja a proteção do mero espaço físico contra agentes externos que nele adentrem para cometer o delito, mas sim ao próprio âmago sentimental que se estabelece entre indivíduos que compartilham a mesma moradia, com fim de proteção dos mais vulneráveis dentro desse grupo de pessoas.

VII. Ademais, o art. 129, § 9º, do Código Penal, não se aplica a situação dos autos, não sendo a paciente ascendente, descendente, irmã, cônjuge ou companheira da vítima, inexistindo convivência, ou prevalecimento das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

VIII. Ordem parcialmente conhecida e concedida.”

(HC 176.196/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, 5.ª TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe de 20/06/2012; grifos nossos)

HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. AMEAÇA. SOGRA E NORA. 3. COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE. LEI MARIA DA PENHA. ABRANGÊNCIA DO CONCEITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. RELAÇÃO DE INTIMIDADE AFETIVA. 4. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. 5. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.

(...)

2. A incidência da Lei nº 11.340/2006 reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade. Precedentes.

3. No caso não se revela a presença dos requisitos cumulativos para a incidência da Lei nº 11.340/06, a relação íntima de afeto, a motivação de gênero e a situação de vulnerabilidade. Concessão da ordem.

(...)”

(HABEAS CORPUS n.º 175.816/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 5.ª TURMA, julgado em 20/06/13, DJe 28/06/13; grifos nossos).

 

Nesse sentido, também dispõe o Enunciado de Entendimento desta Procuradoria-Geral de Justiça:

 

“CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES. LEI MARIA DA PENHA. A incidência da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) pressupõe situação caracterizadora de violência de gênero, não abrangendo, portanto, todo e qualquer delito cometido contra pessoas do sexo feminino” (Protocolados n.ºs 125.268/14 e 139.297/13).

 

Diante do exposto, conhece-se deste incidente para dirimi-lo, a fim de declarar competir ao Ilustre Suscitado a atribuição para intervir nos autos.

A controvérsia a respeito da incidência da Lei Maria da Penha, nos termos ora analisados, não colide com eventual opinião delitiva a ser deduzida pelo promotor natural, motivo por que não se afigura necessária a designação de outro membro ministerial para atuar em seu lugar.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155); parêntese nosso.

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 29 de setembro de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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