Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 146.634/14

Autos n.° 0011480-75.2011 - MM. Juizado Especial Criminal da Comarca de Araras

Suscitante: Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal de Araras

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal de Araras

Assunto: divergência acerca do correto enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. DIVERGÊNCIA ACERCA DO CORRETO ENQUADRAMENTO DOS FATOS, COM REFLEXO NA ATRIBUIÇÃO FUNCIONAL. OMISSÃO DE SOCORRO (CP, ART. 135) OU HOMICÍDIO CULPOSO COM DEFRAUDAÇÃO DO DEVER JURÍDICO DE AGIR (CP, ART. 121, §3.º, C.C. ART. 13, §2.º, LETRA “B”). MOTORISTA DE AMBULÂNCIA QUE, ATENDENDO A CHAMADO, NEGA-SE A PRESTAR SOCORRO, POR JULGAR DESNECESSÁRIO. MORTE DA VÍTIMA. CONDIÇÃO DE GARANTIDOR DEMONSTRADA. CRIME OMISSIVO IMPRÓPRIO.

1.     Não há dúvida acerca do comportamento praticado pelo investigado, o qual, na condição de motorista de ambulância, deixou de prestar socorro à vítima, que posteriormente faleceu, afirmando que sua intervenção se revelaria desnecessária.

2.     Com essa atitude, não só negou a indispensável assistência, mas também defraudou, por absoluta imprudência, o dever de agir que lhe cabia.

3.     Note-se que o debate gira em torno de se reconhecer perpetrado crime omissivo próprio (CP, art. 135) ou comissivo por omissão (CP, art. 121, §3.º, c.c. art. 13, §2.º, letra “b”).

4.     A distinção entre as figuras reside em que, na primeira, viola-se o dever genérico de solidariedade, enquanto que na outra se ofende a responsabilidade específica de atuar para impedir o resultado.

5.     No caso dos autos, o indiciado, na condição de socorrista, podia e tinha o dever jurídico de agir para obstar danos à saúde do falecido, transportando-o até o nosocômio local.

6.     O suspeito, deveras, ocupa a posição de garantidor da não produção do resultado, o que faz sua omissão penalmente relevante.

Solução: conhece-se do conflito para dirimi-lo e declarar que a atribuição compete ao Douto Promotor de Justiça Criminal.

 

 

 

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de omissão de socorro (CP, art. 135) cometido, em tese, por (...).

Isto porque, no dia 28 de junho de 2011, na condição de motorista de ambulância “da linha branca”, foi acionado através do telefone n.º (...) por (...) para socorrer seu irmão (...), o qual, alcoólatra, encontrava-se embriagado e deitado no chão de sua casa, com bastante vômito espalhado ao seu redor.

O averiguado, ao vê-lo, entrou em contato com a central e aduziu que não o transportaria, pois “se tratava de bêbado”.

Disse a (...), em seguida, que estava acostumado com essas situações e no dia seguinte a vítima apresentaria melhoras.

A testemunha tranquilizou-se e voltou para sua residência, mas cerca de duas horas depois o sobrinho a chamou, asseverando que (...) não se encontrava bem.

Ela percebeu que o irmão não respirava e não tinha pulsação, chamando o “SAMU”, o qual constatou seu óbito (fls. 19/20).

(...), companheira de (...), alegou que ouviu de (...) semelhante versão, pois, na ocasião, estava na cidade de (...).

O indiciado, por sua vez, narrou que, chegando ao local indicado, visualizou um homem deitado, roncando, com a cabeça em um colchonete e o corpo no chão, sentindo forte cheiro de álcool.

Ele informou ao irmão do ofendido que sua ambulância não dispunha de maca para transporte de pacientes deitados, somente sentados; este, a partir daí, assegurou que o tiraria do solo, lhe daria banho e o colocaria no sofá.

O investigado recomendou que o fizesse deixando-o de barriga para cima para ele não se afogar no vômito, noticiando à base que (...) estava sendo assistido por (...) e, se necessário, o parente telefonaria novamente, o que de fato se deu, mas para o “SAMU”, sabendo, depois, que a vítima falecera (fls. 13/14).

A certidão de óbito encartada a fl. 22, destarte, citou como causa da morte “obstrução de vias aéreas, vômitos, intoxicação etílica aguda”.

Encerradas as providências inquisitivas, o Douto Promotor de Justiça designado, vislumbrando perpetrada infração de menor potencial ofensivo, postulou o encaminhamento do feito ao Juizado Especial (fl. 30).

A Ilustre Representante Ministerial requereu a designação de audiência preliminar (fl. 45) e, na solenidade, o Insigne Membro do Parquet que passou a oficiar na causa requereu vista dos autos para suscitar conflito de atribuição (fl. 52).

O Nobre Órgão Ministerial, a partir daí, entendendo configurado o delito de homicídio culposo (art. 121, §3.º, do CP), suscitou o incidente (fls. 54/58).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do feito a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitante, com a devida vênia do Ilustre Suscitado; senão, vejamos.

Não há dúvida acerca do comportamento praticado pelo investigado, o qual, na condição de motorista de ambulância, deixou de prestar socorro à vítima, que posteriormente faleceu, afirmando que sua intervenção se revelaria desnecessária.

Com essa atitude, não só negou a indispensável assistência, mas também defraudou, por absoluta imprudência, o dever de agir que lhe cabia.

Note-se que o debate gira em torno de se reconhecer perpetrado crime omissivo próprio (CP, art. 135) ou comissivo por omissão (CP, art. 121, §3.º, c.c. art. 13, §2.º, letra “b”).

A distinção entre as figuras reside em que, na primeira, viola-se o dever genérico de solidariedade, enquanto que na outra se ofende a responsabilidade específica de atuar para impedir o resultado.

No caso dos autos, o indiciado, na condição de socorrista, podia e tinha o dever jurídico de agir para obstar danos à saúde do falecido, transportando-o até o nosocômio local.

O suspeito, deveras, ocupa a posição de garantidor da não produção do resultado, o que faz sua omissão penalmente relevante.

Em face do exposto, sem se adiantar qualquer juízo acerca da opinião delitiva, a qual incumbirá ao promotor natural, conhece-se da presente remessa, dirimindo-se o conflito no sentido de reconhecer que o dever de oficiar no expediente incumbe ao Douto Suscitado.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, designa-se outro promotor de justiça para intervir no caso, facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

                                         

São Paulo, 06 de outubro de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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