Conflito negativo de atribuição

Protocolado n.º 147.428/11

Inquérito Policial n.º 052.04.004278-4 – MM. Juízo do I Tribunal do Júri da Comarca da Capital

Suscitante: 75.º Promotor de Justiça Criminal da Capital

Suscitado: Promotor de Justiça do I Tribunal do Júri da Capital

Assunto: divergência acerca do enquadramento legal da conduta

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. DIVERGÊNCIA ACERCA DO ELEMENTO SUBJETIVO DO INJUSTO. HOMICÍDIO DOLOSO (CP, ART. 121) OU LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE (CP, ART. 129, §3º). SUJEITO QUE, SOB EFEITO APARENTE DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS, DESFERE VIOLENTOS GOLPES COM INSTRUMENTO CONTUNDENTE NA REGIÃO DO PESCOÇO DO OFENDIDO E, EM SEGUIDA, COM A VÍTIMA SUBJUGADA, PROSSEGUE DESFECHANDO OUTROS. ÓBITO DECORRENTE DE SUFOCAÇÃO INDIRETA. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DO DOLO EVENTUAL. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. ATRIBUIÇÃO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO TRIBUNAL DO JÚRI.

 

1.     Os elementos de informação amealhados demonstraram que o agente desferiu inúmeros golpes violentos na vítima empregando instrumento contundente; o primeiro deles atingiu-lhe o pescoço, provocando seu imediato desfalecimento, ocasião em que, não satisfeito, desfechou novos ataques contra o ofendido, completamente subjugado.

2.     Sua ação, nesse contexto, ainda que não se possa afirmar conscientemente direcionada à produção da morte, revela, ao menos indiciariamente, que assumiu o risco de provocá-la. O contexto dos fatos, portanto, permite indicar ter havido dolo eventual quanto à ocisão da vida. Tal figura se dá quando: “o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 288).

3.     No que alude à relação de causalidade entre a ação e o resultado, parece inexistir dúvida, posto que foram os golpes desfechados que desencadearam a sufocação indireta (cf. laudo de exame necroscópico). De mais a ver, tendo o legislador adotado a teoria da equivalência dos antecedentes ou da conditio sine qua non (art. 13, caput, do CP), resta evidente que, não houvesse o agente desferido os golpes na região vital atingida, o óbito não teria se produzido (juízo de eliminação hipotética). Sua atitude, ademais, produziu um risco juridicamente proibido e relevante, que contribuiu decisivamente para que o perigo se convertesse no resultado.

4.     Nada impede, por óbvio, que durante a instrução do processo afigure-se outra realidade fático-probatória, ensejando a aplicação do art. 384 do CPP e a consequente remessa ao Juízo Singular, com espeque no art. 419 do CPP.

Solução: conflito dirimido para declarar a atribuição da Douta Suscitada, designando-se outro promotor de justiça para preservação da independência funcional.

 

 

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar as circunstâncias que envolveram a morte de (...) e as lesões corporais sofridas por (...), ocorridas no dia 26 de agosto de 2004, por volta das 16 horas, no interior da residência situada na Rua Bela Dona, n. 41, Jd. Miragaia, nesta Capital.

Concluídas as providências de polícia judiciária, o Douto Promotor de Justiça do I Tribunal do Júri da Capital requisitou novas diligências, a saber, a vinda do exame complementar relativo à vítima sobrevivente e a elaboração de reconhecimento fotográfico pelo ofendido e pelas testemunhas (fls. 62), as quais, cinco anos depois, foram cumpridas.

A Ilustre Representante Ministerial que passou a oficiar na causa, diante da consecução das medidas investigatórias, considerou que, muito embora tivesse o indiciado, (...) desferido os golpes causadores do resultado letal, não agira com animus necandi, mas somente com animus laedendi, de tal maneira que somente seria lícito imputar-lhe o homicídio preterintencional. Requereu, via de consequência, a remessa do caso à Vara Criminal Comum (fls. 183/185).

A Nobre Órgão do Parquet atuante junto ao Juízo Singular, de sua parte, entendeu de modo diverso, aduzindo não ser possível vislumbrar intenção homicida no comportamento do agressor; suscitou, destarte, o presente conflito negativo de atribuição (fls. 195/197).

Eis a síntese do necessário.

Deve-se destacar, preliminarmente, que a presente remessa assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público. 6.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007. pág. 487).

Pondere-se, não obstante, que em sede de conflito de atribuições não cumpre à Procuradoria-Geral de Justiça efetuar um juízo a respeito da existência de prova da materialidade ou indícios de autoria das infrações penais objeto do expediente. O exame deve se cingir à definição sobre qual é o Membro do Ministério Público a quem incumbe funcionar nos autos.

Pois bem.

Cremos que a razão está com a Douta Suscitante, fazendo-se vênia do entendimento exarado pela Nobre Suscitada.

A controvérsia que subjaz deste procedimento consiste em definir o elemento subjetivo do injusto no que toca ao delito cometido contra (...); vale dizer, trata-se de determinar se (...) atuou com animus occidendi ou com animus laedendi.

O confronto crítico dos elementos de informação revela, em nosso sentir, que a primeira hipótese apresenta-se a mais consentânea com os elementos inquisitoriais.

Isto porque a prova colhida demonstrou que o agente desferiu inúmeros golpes violentos na vítima empregando instrumento contundente; o primeiro deles atingiu-lhe o pescoço, provocando seu imediato desfalecimento, ocasião em que o sujeito ativo, não satisfeito, desfechou novos ataques contra o ofendido, completamente subjugado (nesse sentido, as declarações de fls. 09, 13/14, 34, 42 e 49/50).

Sua ação, nesse contexto, ainda que não se possa afirmar conscientemente direcionada à produção da morte, revela, ao menos indiciariamente, que assumiu o risco de provocá-la.

O contexto dos fatos, portanto, permite indicar ter havido dolo eventual quanto à ocisão da vida. Tal figura se dá quando:

“o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 288).

Os elementos carreados nos autos, consoante já se expôs, com a devida vênia da Ilustre Suscitada, permitem concluir pela existência de crime doloso contra a vida.

No que alude à relação de causalidade entre a ação e o resultado, parece inexistir dúvida, posto que foram os golpes desfechados que desencadearam a sufocação indireta (cf. laudo de exame necroscópico de fls. 32).

De mais a ver, tendo o legislador adotado a teoria da equivalência dos antecedentes ou da conditio sine qua non (art. 13, caput, do CP), resta evidente que, não houvesse o agente desferido os golpes na região vital atingida, o óbito não teria se produzido (juízo de eliminação hipotética). Sua atitude, ademais, produziu um risco juridicamente proibido e relevante, que contribuiu decisivamente para que o perigo se convertesse no resultado.

Nada impede, por óbvio, que durante a instrução do processo afigure-se outra realidade fático-probatória, ensejando a aplicação do art. 384 do CPP e a consequente remessa ao Juízo Comum, com espeque no art. 419 do CPP.

Diante do exposto, assiste razão à Douta Suscitante, motivo porque declaro competir à Ilustre Suscitada a atribuição para atuar no procedimento.

Para preservação de sua independência funcional, determino seja outro membro ministerial designado para prosseguir neste feito, facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Tendo em vista a r. decisão de fls. 187, cumprirá ao promotor de justiça designado interpor recurso em face de eventual rejeição da denúncia por incompetência do juízo.

Expeça-se portaria designando o substituto automático. Publique-se a ementa.

São Paulo, 26 de outubro de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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