Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 150.712/12

Autos n.º 2.220/12 – MM. Juízo da Vara do Juizado Especial Criminal Comarca de Guaratinguetá

Suscitante: Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal de Guaratinguetá

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal de Guaratinguetá

Autor do fato: (...)

Assunto: divergência sobre o enquadramento legal dos fatos (embriaguez ao volante ou direção perigosa)

 

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (CTB, ART. 306) OU CONTRAVENÇÃO PENAL DE DIREÇÃO PERIGOSA (LCP, ART. 34). CONTROVÉRSIA ACERCA DA IDONEIDADE DO EXAME CLÍNICO COMO PROVA CAPAZ DE DEMONSTRAR O NÍVEL DE DOSAGEM ALCOÓLICA NO SANGUE. PRECEDENTE DO STJ. INEXISTÊNCIA DE EFEITO VINCULANTE. PROCEDIMENTO ENCAMINHADO AO JUÍZO COMUM PELO PROMOTOR DE JUSTIÇA OFICIANTE NO JECRIM. DISCORDÂNCIA DA REMESSA, MANIFESTADA EM PEDIDO DE ARQUIVAMENTO NO TOCANTE AO DELITO DE TRÂNSITO, COM PLEITO DE RETORNO À ORIGEM PARA ANÁLISE DA CONTRAVENÇÃO REMANESCENTE. REQUERIMENTO INDEVIDO, POSTO QUE CARACTERIZADO CONFLITO DE ATRIBUIÇÃO (OBSERVÂNCIA DO ATO NORMATIVO N. 50/95 – PGJ, ARTS. 1.º E 2º.). INEXISTÊNCIA DE PRECLUSÃO DO ENQUADRAMENTO TÍPICO INICIAL. APTIDÃO DA COMPROVAÇÃO DO ESTADO DE EBRIEZ POR MEIO DE EXAME CLÍNICO.

 

1.      Cuida-se de procedimento investigatório no qual se apurou ter o autor do fato conduzido veículo automotor em via pública de maneira descontrolada, em ziguezague, em comprovado estado de embriaguez.

2.      Há três questões que subjazem deste expediente. É preciso determinar, preliminarmente, se a definição do enquadramento legal da conduta, como crime de trânsito (CTB, art. 306), constitui matéria preclusa e, portanto, pode ou não influir na determinação da atribuição ministerial. Em caso afirmativo, deve-se estabelecer se o exame pericial realizado constitui prova idônea para demonstrar a elementar do tipo. Na hipótese contrária, verificar se o dever de oficiar nos autos compete, em face da prevenção, ao Douto Suscitante ou à Ilustre Suscitada.

3.      Com relação ao primeiro tópico, parece-nos que não cabe falar em preclusão do enquadramento jurídico da conduta como delito de trânsito. Ainda que tenha havido, impropriamente, ressalte-se, o arquivamento do expediente sob tal ótica, a matéria ainda não se encontra definida. Isto porque eventual discordância entre membros ministeriais acerca da tipificação jurídica de fato único, com reflexos na atribuição funcional, dá ensejo a inegável conflito de atribuição, o qual deve ser dirimido pela Procuradoria-Geral de Justiça. Situação semelhante ocorre, mutatis mutandis, quando dois ou mais órgãos judiciais divergem a respeito da natureza do crime, com repercussão na competência ratione materiae para o processo e julgamento dos fatos. Nestes casos, não se pode argumentar que o enquadramento inicialmente efetuado se torna matéria preclusa, mesmo existindo decisão judicial assim o reconhecendo. Confira-se, nesse sentido: HC 103.335/RJ, Rel. Ministro CELSO LIMONGI - DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP, STJ, 6.ª TURMA, julgado em 18/06/2009, DJe de 03/08/2009 e HC 43.583/MS, STJ, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 27/09/2005, DJ de 24/10/2005, p. 356.

4.      Obtempere-se, ademais, que padecem de contradição lógica as manifestações exaradas pelo Parquet e MM. Juízo. Explica-se: em sendo correta a tese de que inexistiu crime de embriaguez ao volante, falece atribuição ministerial e competência judicial para formar e acatar a opinião delitiva. Significa dizer que, ou se trata de órgão judicial adequado para o exame da matéria, cabendo-lhe, em consequência, analisar eventual pedido de arquivamento, ou lhe falece tal competência, situação na qual deve encaminhar a causa para o juiz natural. Somente se pode falar em arquivamento do procedimento investigatório quando da análise do fato resulta a impossibilidade de ajuizamento da denúncia. Se, entretanto, verificar-se que, a despeito da suposta falta de atribuição ministerial, a conduta possui caráter criminoso, como ocorreu in casu, cumpre ao Promotor de Justiça declinar de sua atribuição e requerer a remessa do feito ao órgão competente. A respeito do tema, os arts. 1.º e 2º do Ato Normativo n. 50/95. Nota-se, portanto, que restou instaurado conflito negativo de atribuição.

5.      Definida a questão preliminar, passa-se à análise do enquadramento típico. O ponto fulcral reside em saber se a prova pericial encartada constitui meio idôneo para demonstrar a elementar do tipo penal insculpido no art. 306 do CTB, referente ao nível de dosagem alcóolica. A resposta parece-nos afirmativa, em que pese o entendimento recente da Colenda 3.ª Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, adotado por apertada maioria (cf. REsp. n. 1.111.566/DF). Deve-se destacar, de início, que não se cuida de decisão com efeito vinculante e alcance erga omnes. Trata-se de importante precedente jurisprudencial, mas, enquanto não houver decisão do Pretório Excelso sobre a matéria, proferida em controle concentrado de constitucionalidade, nada impede, por óbvio, que se entenda de modo diverso, seja em nome da independência funcional, princípio institucional do Parquet, seja em razão do livre convencimento motivado que anima as decisões judiciais. Referida postura jurídica, em nosso sentir, parece resgatar o vetusto sistema da prova tarifada ou da certeza moral do legislador, na qual se limitava a atividade probatória de tal maneira, que compelia o julgador a se ater a um estrito leque de meios probantes para conhecer a verdade processual, impingindo-o a aceitar uma realidade, nos autos, que afronta a verdade fática.

6.      Em sendo válida, como se pretende, a prova pericial encartada no procedimento, reconhece-se que houve crime de trânsito (CTB, art. 306). Ressalte-se, nesta ordem de ideias, que o tipo penal em tese infringido, antes da modificação trazida pela Lei n. 11.705/08, exigia expressamente que o agente conduzisse veículo “sob influência” de álcool ou substância análoga. Cuidava-se, portanto, de crime de perigo concreto. Com a alteração recentemente introduzida, o legislador retirou o requisito mencionado, transformando-o em crime de perigo abstrato. Nada há de inconstitucional na construção típica em apreço, em que pese as opiniões contrárias de renomados juristas. É preciso ponderar, na esteira dos ensinamentos de Fernando Capez, que são válidos e constitucionais os delitos de perigo presumido. (Curso de direito penal, vol. 1, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 25). Tendo em vista cuidar-se de delito de perigo presumido, torna-se despicienda a comprovação de que houve conduta anormal. De outro lado, não é menos relevante anotar que, cientifica e estatisticamente, já se demonstrou que o fato de o motorista encontrar-se com determinado nível de álcool (ou substância psicoativa) em seu sangue reduz consideravelmente seus reflexos e percepção, provocando risco efetivo a ele próprio e a todos os demais que se encontram ao seu redor. Bem por isso, não se admite como válido eventual argumento de que há violação ao princípio da ofensividade, na medida em que a conduta não produziria, de per si, riscos aos valores maiores (vida e integridade corporal) salvaguardados por nossa Constituição. Mostra-se apto à comprovação do estado de embriaguez, repise-se, o exame clínico, notadamente quando o sujeito se nega a realizar testes de etilômetro e exame de sangue, sob pena de deixar a eficácia do tipo penal ao livre arbítrio do infrator. A perícia levada a efeito neste inquérito, portanto, patenteia-se hábil como meio de prova, pois se encontra detalhada e aponta expressamente a alcoolemia no averiguado, maior ou igual a seis decigramas de álcool por litro de sangue ou mais (fls. 11 e 18/19).

Solução: conhece-se do presente conflito, dirimindo-se-o, com o fim de declarar que a formação da opinião delitiva incumbe à Douta Promotora de Justiça Suscitada.

 

 

 

Cuida-se de procedimento investigatório instaurado visando à apuração da conduta de (...), a quem se atribuiu, inicialmente, a contravenção penal de direção perigosa (LCP, art. 34).

Colhe-se dos elementos de informação reunidos que o agente conduzia veículo automotor em via pública de maneira descontrolada, em ziguezague.

Acionada a Polícia Militar, verificaram os milicianos seu evidente estado de embriaguez, o qual resultou confirmado por meio de exame clínico (fls. 11 e 18/19), já que o sujeito ativo recusou-se a se submeter ao teste do etilômetro.

Concluídas as providências de polícia judiciária, o Douto Promotor de Justiça oficiante junto ao Juizado Especial Criminal vislumbrou, na espécie, crime de embriaguez ao volante (CTB, art. 306), requerendo o envio do expediente ao Juízo Criminal Comum (fls. 22).

A Ilustre Representante Ministerial que o recebeu, todavia, discordou do enquadramento legal, por considerar inidônea a prova da elementar objetiva relativa ao nível de dosagem alcóolica e, diante disto, em vez de suscitar conflito negativo de atribuição, como determina o Ato Normativo n. 050/95 – PGJ/SP, de 31 de janeiro de 1995, postulou o arquivamento do feito e sua posterior remessa ao JECRIM para apuração da infração de direção perigosa (fls. 28/31).

O pleito foi integralmente acolhido (fls. 32).

O competente Membro do Parquet originariamente atuante, então, reiterou sua posição acerca da classificação jurídica do ato, mas se resignou em face do arquivamento deferido. Não obstante, asseverou que a causa deveria permanecer sob os cuidados da MM. 3.ª Vara Criminal da Comarca e do Promotor de Justiça nela oficiante, suscitando o presente conflito (fls. 35/38).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que a vinda do expediente a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso, de modo que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe o dever de oficiar nos autos.

Pois bem.

Há três questões que subjazem deste expediente.

É preciso determinar, preliminarmente, se a definição do enquadramento legal da conduta, como crime de trânsito, constitui matéria preclusa e, portanto, pode influir na determinação da atribuição ministerial.

Em caso afirmativo, estabelecer se o exame pericial realizado constitui prova idônea para demonstrar a elementar do tipo.

Na hipótese contrária, verificar se o dever de oficiar nos autos compete, em face da prevenção, ao Douto Suscitante ou à Ilustre Suscitada.

Com relação ao primeiro tópico, parece-nos que não cabe falar em preclusão do enquadramento jurídico da conduta como delito de trânsito.

Ainda que tenha havido, impropriamente, ressalte-se, o arquivamento do expediente sob tal ótica, a matéria ainda não se encontra definida.

Isto porque eventual discordância entre membros ministeriais acerca da tipificação jurídica de fato único, com reflexos na atribuição funcional, dá ensejo a inegável conflito de atribuição, o qual deve ser dirimido pela Procuradoria-Geral de Justiça.

Situação semelhante ocorre, mutatis mutandis, quando dois ou mais órgãos judiciais divergem a respeito da natureza do crime, com repercussão na competência ratione materiae para o processo e julgamento dos fatos. Nestes casos, não se pode argumentar que o enquadramento inicialmente efetuado se torna matéria preclusa, mesmo existindo decisão judicial assim o reconhecendo. Confira-se, nesse sentido, decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

 

HABEAS CORPUS IMPETRADO PELO PROMOTOR PÚBLICO. ADMISSIBILIDADE. LEGITIMIDADE. JUIZ DO JÚRI DESCLASSIFICOU OS FATOS PARA CRIME DE COMPETÊNCIA DO JUÍZO SINGULAR. DÚVIDA QUANTO À EXISTÊNCIA DE "ANIMUS NECANDI" NA CONDUTA DO DENUNCIADO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA SUSCITADO POR CONSIDERAR COMPETENTE O TRIBUNAL DO JÚRI PARA JULGAMENTO DA CAUSA. TRIBUNAL ESTADUAL CONHECE DO CONFLITO E APONTA O JUÍZO SUSCITADO COMO O COMPETENTE. HABEAS CORPUS IMPETRADO PELO PROMOTOR CONTRA DECISÃO DO TRIBUNAL ESTADUAL. ORDEM DENEGADA.

(...)

2. Mesmo à míngua de recurso da acusação e da defesa, a decisão desclassificatória para crime de competência do juízo singular pode ser contestada por este último.

3. Conflito de competência conhecido pelo Tribunal estadual que aponta o juiz do Tribunal do Júri, o suscitado, como competente.

4. Excesso de linguagem do acórdão não reconhecido.

5. Ordem conhecida, mas denegada”.

(STJ, HC 103.335/RJ, Rel. Ministro CELSO LIMONGI -  DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJSP, 6.ª TURMA, julgado em 18/06/2009, DJe de 03/08/2009; grifo nosso).

 

HABEAS CORPUS. JÚRI. DESCLASSIFICAÇÃO. REMESSA AO JUÍZO COMUM. CONFLITO DE JURISDIÇÃO. DECISÃO DO PRIMEIRO JUÍZO. NÃO VINCULAÇÃO DO JUÍZO RECEBEDOR.

Na linha do que dispõem os arts. 114 e 115 do Código de Processo Penal, o conflito pode ser aventado pelas partes e pelos juízos em dissídio, desde que, no caso destes, não concordem, de imediato, com a competência para julgar o caso (conflito negativo).

Portanto, não se pode aceitar a coisa julgada da decisão do primeiro juízo, sob pena de considerar a possibilidade de julgamento do caso por juiz absolutamente incompetente, longe da órbita do Juiz Natural.

Ordem denegada”.

(STJ, HC 43.583/MS, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 27/09/2005, DJ de 24/10/2005, p. 356; grifo nosso).

 

Obtempere-se, ademais, que padece de contradição lógica a manifestação exarada pelo Parquet a fls. 28/31, bem como a r. decisão de fls. 32. Explica-se: em sendo correta a tese de que inexistiu crime de embriaguez ao volante, falece atribuição ministerial e competência judicial para formar e acatar a opinião delitiva.

Significa dizer que, ou se trata de órgão judicial adequado para o exame da matéria, cabendo-lhe, em consequência, analisar eventual pedido de arquivamento, ou lhe falece tal competência, situação na qual deve encaminhar a causa para o juiz natural.

Somente se pode falar em arquivamento do procedimento investigatório quando da análise do fato resulta a impossibilidade de ajuizamento da denúncia. Se, entretanto, verificar-se que, a despeito da suposta falta de atribuição ministerial, a conduta possui caráter criminoso, como ocorreu in casu, cumpre ao Promotor de Justiça declinar de sua atribuição e requerer a remessa do feito ao órgão competente.

A respeito do tema, o art. 1.º do Ato Normativo n. 50/95 dispõe que:

 

“Convencendo-se o membro do Ministério Público de que não possui atribuição para oficiar no inquérito policial ou peças de informação, requererá ao Juízo o encaminhamento dos autos ao Órgão do Ministério Público que indicar e a juntada de manifestação fundamentada do seu posicionamento, em separado, dirigida a este último”.

 

O art. 2.º, de sua parte, determina que:

 

“Discordando, o Órgão do Ministério Público em favor de quem se declinou a atribuição suscitará o conflito negativo, em manifestação fundamentada, dirigida ao Procurador-Geral de Justiça, e requererá ao Juízo a sua juntada aos autos e a remessa destes à Procuradoria-Geral de Justiça”.

 

Nota-se pela transcrição dos dispositivos acima que a postura ministerial de fls. 28/31 já enseja, de per si, um conflito negativo de atribuição.

Em face disto, é preciso dirimir o incidente instaurado.

Definida a questão preliminar, passa-se à análise do enquadramento típico.

O ponto fulcral reside em saber se a prova pericial encartada a fls. 11 e 18/19 constitui meio idôneo para demonstrar a elementar do tipo penal insculpido no art. 306 do CTB, referente ao nível de dosagem alcóolica.

 A resposta parece-nos afirmativa, em que pese o entendimento recente da Colenda 3.ª Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, adotado por apertada maioria (cf. REsp. n. 1.111.566/DF).

Deve-se destacar, de início, que não se cuida de decisão com efeito vinculante e alcance erga omnes.

Trata-se de importante precedente jurisprudencial, mas, enquanto não houver decisão do Pretório Excelso sobre a matéria, proferida em controle concentrado de constitucionalidade, nada impede, por óbvio, que se entenda de modo diverso, seja em nome da independência funcional, princípio institucional do Parquet, seja em razão do livre convencimento motivado que anima as decisões judiciais.

Referida postura jurídica, em nosso sentir, parece resgatar o vetusto sistema da prova tarifada ou da certeza moral do legislador, na qual se limitava a atividade probatória de tal maneira, que compelia o julgador a se ater a um estrito leque de meios probantes para conhecer a verdade processual, impingindo-o a aceitar uma realidade, nos autos, que afronta a verdade fática.

Em sendo válida, como se pretende, a prova pericial encartada no procedimento, reconhece-se que houve crime de trânsito (CTB, art. 306).

Ressalte-se, nesta ordem de ideias, que o tipo penal em tese infringido, antes da modificação trazida pela Lei n. 11.705/08, exigia expressamente que o agente conduzisse veículo “sob influência” de álcool ou substância análoga. Cuidava-se, portanto, de crime de perigo concreto. Com a alteração recentemente introduzida, o legislador retirou o requisito mencionado, transformando-o em crime de perigo abstrato.

Nada há de inconstitucional na construção típica em apreço, em que pese as opiniões contrárias de renomados juristas.

É preciso ponderar, na esteira dos ensinamentos de Fernando Capez, que são válidos e constitucionais os delitos de perigo presumido. Com efeito, ensina o autor que:

 

“...subsiste a possibilidade de tipificação dos crimes de perigo abstrato em nosso ordenamento legal, como legítima estratégia de defesa do bem jurídico contra agressões em seu estágio ainda embrionário, reprimindo-se a conduta, antes que ela venha a produzir um perigo concreto ou um dano efetivo. Trata-se de cautela reveladora de zelo do Estado em proteger adequadamente certos interesses. Eventuais excessos podem, no entanto, ser corrigidos pela aplicação do princípio da proporcionalidade” (Curso de direito penal, vol. 1, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 25).

 

Tendo em vista cuidar-se de delito de perigo presumido, torna-se despicienda a comprovação de que houve conduta anormal.

De outro lado, não é menos relevante anotar que, cientifica e estatisticamente, já se demonstrou que o fato de o motorista encontrar-se com determinado nível de álcool (ou substância psicoativa) em seu sangue reduz consideravelmente seus reflexos e percepção, provocando risco efetivo a ele próprio e a todos os demais que se encontram ao seu redor.

Bem por isso, não se admite como válido eventual argumento de que há violação ao princípio da ofensividade, na medida em que a conduta não produziria, de per si, riscos aos valores maiores (vida e integridade corporal) salvaguardados por nossa Constituição.

Mostra-se apto à comprovação do estado de embriaguez, repise-se, o exame clínico, notadamente quando o sujeito se nega a realizar testes de etilômetro e exame de sangue, sob pena de deixar a eficácia do tipo penal ao livre arbítrio do infrator.

A perícia levada a efeito neste inquérito, portanto, patenteia-se hábil como meio de prova, pois se encontra detalhada e aponta expressamente a alcoolemia no averiguado, maior ou igual a seis decigramas de álcool por litro de sangue ou mais (fls. 11 e 18/19).

A atribuição, destarte, recai sobre a Douta Suscitada.

Diante do exposto, conhece-se do presente conflito, dirimindo-se-o, com o fim de declarar que a formação da opinião delitiva incumbe à Promotora de Justiça acima citada.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, designa-se outro membro ministerial para oferecer denúncia pelo delito de trânsito e prosseguir no feito em seus ulteriores termos, cumprindo-lhe interpor os recursos cabíveis na hipótese de sucumbência. Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria, designando-se o substituto automático. Publique-se a ementa.

São Paulo, 17 de outubro de 2012.

 

 

               Márcio Fernando Elias Rosa

                                      Procurador-Geral de Justiça

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