Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 157.994/14

Autos n.º 3012118-70.2013 – MM. Juízo da 1.ª Vara Criminal da Comarca de Jaú

Suscitante: 3.º Promotor de Justiça de Jaú

Suscitado: 5.º Promotor de Justiça de Jaú

Assunto: divergência quanto ao enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. HOMICÍDIO DOLOSO OU CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. MOTORISTA CONDUZINDO AUTOMÓVEL COM ELEVADO TEOR DE ÁLCOOL NO SANGUE, EM AUTOESTRADA COM PISTA DUPLA, TRAFEGANDO CONSCIENTEMENTE NA CONTRAMÃO DE DIREÇÃO, DESENVOLVENDO ALTA VELOCIDADE. VERSÃO DO INDICIADO, NO SENTIDO DE QUE HOUVE DISTRAÇÃO, INCOMPATÍVEL COM OS ELEMENTOS INFORMATIVOS AMEALHADOS. DOLO EVENTUAL SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADO. ATRIBUIÇÃO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO TRIBUNAL DO JÚRI.

1.      O indiciado encontrava-se altamente embriagado, apresentando 1,6 grama de álcool por litro de sangue, e trafegava em autoestrada na contramão de direção, desenvolvendo alta velocidade. Nesse contexto, provocou o embate, do qual resultou a morte do condutor de outro veículo, com o qual colidiu frontalmente.

2.      Há nos autos prova inequívoca atestando a dinâmica do abalroamento; além das provas orais, o feito contém exames periciais confirmando a ebriedade e a condução irregular.

3.      A versão do increpado, no sentido de que se encontrava na contramão por mera distração, mostrou-se inverossímil.

4.      Isto porque a via pública por onde trafegava se constituía em autoestrada com pistas largas, muro de concreto separando os sentidos de direção e sinalização mais do que visível. Ademais disso, o autor, ao que tudo indica, conhecia a região, bem como suas vias principal e secundárias. Denota-se, daí, não se cuidar de atitude provocada por desatenção, mas de inequívoco comportamento destinado a expor a vida de terceiros a perigo direto e iminente. Torna-se forçoso reconhecer, em semelhante contexto, que previu a possibilidade de provocar a morte de outrem e, ainda assim, anuiu para com o resultado, mostrando absoluta indiferença. Conforme ponderava HUNGRIA, há de se perquirir o voluntas ad necem a partir dos elementos externos: “Desde que não é possível pesquisá-lo no foro íntimo do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente se traduz, de regra, no seu ato" (Comentários ao Código Penal, 5.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1955, vol. V, pág. 49).

5.      Ocorre o dolo eventual, ademais, quando: “o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 288). Os elementos carreados nos autos, consoante já se expôs, permitem concluir pela existência de crime doloso contra a vida.

6.      Calha à pena ponderar que, se dúvidas existissem quanto ao elemento subjetivo do injusto, estas se resolveriam, nesta fase da persecução penal, em favor da sociedade (vide STJ, Conflito de Competência n.º 113.020, rel. MIN. OG FERNANDES, julgado em 23 de março de 2011).

 

Solução: conhece-se do presente conflito, declarando que a atribuição de atuar no procedimento incumbe ao Douto Suscitante, designando-se, em respeito à sua independência funcional, outro promotor de justiça para oferecer a peça inaugural, bem como prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

 

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apuração das circunstâncias em que se deu a morte de (...).

O Douto Promotor de Justiça Criminal, ao receber o procedimento, vislumbrando o cometimento do delito de homicídio doloso (CP, art. 121, caput), requereu seu envio ao Ilustre Representante Ministerial oficiante junto ao Tribunal do Júri da Comarca (fls. 141/142).

O competente Membro do Parquet destinatário, de sua parte, entendendo que a conduta subsumir-se-ia ao crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor (CTB, art. 302), suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 146/153).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que a presente remessa assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitado, com a máxima vênia do Ilustre Suscitante; senão, vejamos.

 

Dos fatos

Pelo que se apurou, no dia 07 de setembro de 2013, (...) conduzia veículo automotor pela Rodovia SP-225, e, na altura do km 178, colidiu frontalmente com o automóvel pilotado pelo falecido.

Verificou-se, então, que o increpado encontrava-se altamente embriagado, apresentando 1,6 grama de álcool por litro de sangue, e trafegava em autoestrada na contramão de direção, desenvolvendo alta velocidade.

Nesse contexto, provocou o embate, do qual resultou a morte de (...) e lesões corporais nos ocupantes do carro dirigido por ele, a saber, (...).

Estes, muito embora descrevendo os ferimentos sofridos, não se submeteram a exame de corpo de delito (fl. 131) e optaram por não representar em face do indiciado (fls. 55/57).

 

Dos elementos de informação

Há nos autos prova inequívoca atestando a dinâmica do abalroamento.

Além das provas orais, o feito contém exames periciais confirmando a embriaguez (fl. 46) e a condução na contramão (fls. 73/126).

Essas, ademais, as evidentes causas do desfecho letal.

Frise-se que os policiais militares rodoviários responsáveis pela ocorrência asseveraram que o agente apresentava em suas narinas um pó branco, suspeitando tratar-se de cocaína, sendo sua condição de usuário de substâncias psicoativas conhecida na cidade de Itapuí (o consumo de tal droga, porém, não foi confirmado nos autos).

De outra parte, perceberam, na Santa Casa da cidade, que o sujeito encontrava-se completamente alterado, sequer conseguindo expressar-se naturalmente (fls. 37/40).

O averiguado afirmou que se encontrava na contramão por mera distração, não notando tal circunstância. Fosse verossímil esta alegação, poder-se-ia admitir a tese de que agiu culposamente.

Ocorre, porém, que a via pública por onde trafegava se constituía em autoestrada com pistas largas, muro de concreto separando os sentidos de direção e sinalização mais do que visível.

Ademais disso, o autor, ao que tudo indica, conhecia a região, bem como suas vias principal e secundárias.

Denota-se, daí, que não se cuidava de atitude provocada por desatenção, mas de inequívoco comportamento destinado a expor a vida de terceiros a perigo direto e iminente.

Torna-se forçoso reconhecer, em semelhante contexto, que previu a possibilidade de provocar a morte de outrem e, ainda assim, anuiu para com o resultado, mostrando absoluta indiferença.

 

Do enquadramento legal

As circunstâncias que gravitam em torno do fato e, em particular, os dados acima retratados, revelam, portanto, que não se pode afastar, nesta fase da persecução penal, a ocorrência de dolo eventual.

Tal figura, como é cediço, encontra-se traçada em nosso Código Penal, na fórmula abstrata do art. 18, inc. I, in fine, calcada na atitude subjetiva de assumir o risco de produzir o resultado.

A descrição legal, todavia, não é considerada pela doutrina como fiel à essência do dolus eventualis, como adverte, entre outros, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (Lições de Direito Penal, A nova Parte Geral, 8ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1985, pág. 178).

O delineamento dessa modalidade de dolo ocorre quando o sujeito prevê o resultado como possível e o aceita ou com ele consente.

Há, portanto, a representação do evento, isto é, o desfecho gravoso passa pela mente do autor, aliada à sua aquiescência, ou seja, à indiferença quanto à sua produção. Como ensina DAMÁSIO DE JESUS:

 

“A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (Direito Penal, Vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2008, pág. 288).

 

Essa anuência à produção do resultado não é, jamais, verbalizada ou mesmo confessada. Não requer, ademais, consentimento explícito e formalmente demonstrado. O único meio de se aferir essa postura psíquica se dá por meio do exame do comportamento exterior. Jamais o indiciado, com efeito, irá declarar perante a autoridade que previu e não se importou com o evento. O inquérito policial sub examen não foge à regra.

Neste diapasão, o que se deve perquirir é identificar no pensamento do autor da conduta a seguinte postura psicológica:

 

"vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado" (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal, 5.ª edição, 10.ª Tiragem, São Paulo, Saraiva, 2002, pág. 303).

 

Nessa forma de dolo, ensina LUIZ LUISI,

 

"o agente se propõe a determinado fim e na representação dos meios a serem usados, bem como na forma de operá-los, prevê a possibilidade de ocorrerem determinadas conseqüências. Quando o agente, apesar de prever essas conseqüências como possíveis - e embora não as deseje - tolera, consente, aprova ou anui na efetivação das mesmas, não desistindo de orientar sua ação no sentido escolhido e querido para atingir o fim visado, consciente da possibilidade das consequências de tal opção, o dolo, com relação às conseqüências previstas como possíveis, é eventual" (O tipo penal e a teoria finalista da ação, Porto Alegre, A Nação Editora, 1979, pág. 74[1]).

 

A prova examinada demonstra que o increpado não se deixou dissuadir da execução do fato pela possibilidade, e até mesmo probabilidade, dele conhecida, de causar danos pessoais e gravíssimos aos usuários da rodovia.

Repita-se que o aplicador do Direito, na pesquisa do dolo eventual, deve se valer das circunstâncias exteriores.

De conferir-se, nesta linha, a clássica lição de NELSON HUNGRIA:

 

"Como reconhecer-se a voluntas ad necem? Desde que não é possível pesquisá-lo no foro íntimo do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente se traduz, de regra, no seu ato" (Comentários ao Código Penal, 5.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1955, vol. V, pág. 49).

 

Há, destarte, elementos para se inferir o dolus eventualis.

Deve-se destacar, por derradeiro, que na presente fase, ou seja, quando do início da persecutio criminis in judicio, há de prevalecer o princípio in dubio pro societate.

A esse respeito, assim se pronunciou o Colendo Superior Tribunal de Justiça:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. HOMICÍDIO, NA FORMA TENTADA, PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL. INQUÉRITO POLICIAL. NECESSIDADE DE EXAME DETALHADO E CUIDADOSO DO CONJUNTO PROBATÓRIO. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM.

1. A presença de dolo, direito ou eventual, na conduta do agente só pode ser acolhida na fase inquisitorial quando se apresentar de forma inequívoca e sem necessidade de exame aprofundado de provas, eis que neste momento pré-processual prevalece o princípio do in dubio pro societate.

2. Os fatos serão melhor elucidados no decorrer do desenvolvimento da ação penal, devendo o processo tramitar no Juízo Comum, por força do princípio in dubio pro societate que rege a fase do inquérito policial, em razão de que somente diante de prova inequívoca deve o réu ser subtraído de seu juiz natural. Se durante o inquérito policial, a prova quanto à falta do animus necandi não é inconteste e tranqüila, não pode ser aceita nesta fase que favorece a sociedade, eis que não existem evidências inquestionáveis para ampará-la sem margem de dúvida.

3. O parágrafo único do art. 9º do CPM, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.299/96, excluiu do rol dos crimes militares os crimes dolosos contra a vida praticado por militar contra civil, competindo à Justiça Comum a competência para julgamento dos referidos delitos.

(...)”

(STJ, Conflito de Competência n. 113.020, rel. MIN. OG FERNANDES, julgado em 23 de março de 2011).

 

Nada impede, por óbvio, que durante o sumário da culpa a prova indique outro caminho, situação em que poderá se operar a desclassificação a que alude o art. 419 do CPP.

 

Conclusão

Diante do exposto, conhece-se deste incidente para dirimi-lo, a fim de declarar que a atribuição para oficiar nos autos compete ao mui diligente Suscitante.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, tendo em vista a opinio delicti exarada, designa-se outro Representante Ministerial para atuar na causa, facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 20 de outubro de 2014.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

/aeal



[1] Apud JESUS, Damásio de. O caso da morte do indígena Pataxó – Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, out. 1997. Disponível em: <www.damasio.com.br>.