Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 162.500/14

Autos n.º 0088013-05.2012 - MM. Vara Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital

Suscitante: Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal Central da Capital

Assunto: definição da incidência da Lei Maria da Penha à espécie, com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO.  LESÃO CORPORAL QUALIFICADA PELA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (CP, ART. 129,§§ 9.º E 10), AMEAÇA (CP, ART. 147), INJÚRIA (CP, ART. 140, CAPUT) E APROPRIAÇÃO INDÉBITA (CP, ART. 168, CAPUT). CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. OFENDIDA QUE ABRIGOU O SUJEITO EM SUA RESIDÊNCIA, EM FACE DA AMIZADE QUE MANTINHAM, RECUSANDO-SE ELE A DEIXAR O LOCAL QUANDO INSTADO A FAZÊ-LO. PERMANÊNCIA NO IMÓVEL POR MAIS DE UM ANO, COM NOTÍCIA DE FREQUENTES AGRESSÕES, AMEAÇAS E OFENSAS. INDÍCIOS DE QUE O COMPORTAMENTO SE MOSTRA REITERADO. CONDUTA BASEADA NA SUPOSTA DOMINAÇÃO DO AGENTE EM FACE DA VÍTIMA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONFIGURADA. ATRIBUIÇÃO AFETA AO PROMOTOR DE JUSTIÇA OFICIANTE NA ESFERA DA VARA ESPECIALIZADA.

1. A Procuradoria-Geral de Justiça vem decidindo, na esteira do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que se deve conferir à Lei n.º 11.340/06 interpretação restritiva. Por esse motivo, não basta tão somente que o sujeito passivo da infração seja do sexo feminino para justificar a incidência da legislação protetiva.

2. Há casos, frise-se, nos quais a violência de gênero pode ser reconhecida de plano, como ocorre com infrações envolvendo pessoas que mantêm ou mantiveram relação amorosa e, por óbvio, a vítima pertence ao sexo feminino. O mesmo se pode dizer de casos envolvendo estupro de vulnerável.

3. Nas demais situações não se reconhece, de regra, situação regida pela Lei Maria da Penha, salvo se houver algum traço indicativo de que o comportamento decorre da submissão do homem contra a mulher.

4. Na hipótese em testilha, se cuida de comportamento reiteradamente cometido pelo investigado, denotando retratar violência de gênero, a ponto de justificar a aplicação da multicitada Lei especial.

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, declarando que a atribuição para oficiar no caso incumbe ao Douto Promotor de Justiça responsável pelos feitos da Lei Maria da Penha.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática dos delitos de lesão corporal qualificada pela violência doméstica (CP, art. 129, §§ 9.º e 10), ameaça (CP, art. 147), injúria (CP, art. 140, caput) e apropriação indébita (CP, art. 168, caput) cometidos, em tese, por (...) contra (...).

Encerradas as providências inquisitivas, o Douto Promotor de Justiça Criminal, vislumbrando aplicável ao feito a Lei n.º 11.340/06, postulou seu envio à Vara Especializada (fl. 84, verso).

A Ilustre Representante Ministerial em exercício no citado órgão judicial, contudo, discordou de seu antecessor, por entender não caracterizada violência de gênero, dada a falta de relacionamento amoroso entre os envolvidos e a ausência de situação denotando poder de dominação do agente em face da vítima, motivo por que suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 94/97).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do expediente a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

Assiste razão ao Douto Suscitado, com a máxima vênia da Ilustre Suscitante; senão, vejamos.

Anote-se, de início, que esta Procuradoria-Geral de Justiça possui precedentes nos quais, em situações onde inexistente relacionamento amoroso entre o agente e a ofendida, afastou a incidência da Lei Maria da Penha, justamente porque o caso concreto não apresentava qualquer traço peculiar indicativo de violência de gênero.

Na presente hipótese, porém, outro é o cenário.

As atitudes do investigado, confirmadas pela vítima e testemunhas, traduzem mais do que um isolado entrevero, mas clara ação lastreada em dominação de gênero.

Com efeito, depois de ser acolhido por (...) (falecida durante o trâmite do expediente, consoante fls. 63/64) em sua residência, para ali coabitar temporariamente, apossou-se do lar e se recusou a sair, passando a agredir, ameaçar e ofender o sujeito passivo com certa frequência.

Há notícia, ainda, de ter se apoderado de valores a ele pertencentes, por meio de saques indevidos de sua conta corrente.

Denota-se, neste cenário, personalidade violenta e dominadora do increpado diante de pessoa do sexo feminino.

Calha à pena citar, nesta ordem de ideias, o escólio de MARIA BERENICE DIAS, que pondera devam os arts. 5.º e 7.º da Lei n. 11.340/06 ser interpretados conjugadamente, a fim de se extrair o conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher:

 

“Primeiro a Lei define o que seja violência doméstica (art. 5º): “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Depois estabelece seu campo de abrangência. A violência passa a ser doméstica quando praticada: a) no âmbito da unidade doméstica; b) no âmbito da família; ou c) em qualquer relação íntima de afeto, independente da orientação sexual” (A Lei Maria da Penha na Justiça – efetividade da Lei n. 11.340/06 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 40).

 

A autora prossegue na análise do citado conceito e afirma:

 

“Não só as esposas, companheiras ou amantes estão no âmbito de abrangência de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o pólo passivo da ação delituosa” (op. cit., pág. 41).

 

Sob outra vertente, o pressuposto para a subsunção do fato à Lei Maria da Penha é a configuração de violência de gênero, fazendo-se necessário, destarte, detectar a prevalência no sujeito ativo de uma condição de superioridade, subjugando a ofendida.

Nesse sentido, o entendimento da Egrégia 13.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“...

Nota-se, portanto, que a aplicabilidade da Lei Maria da penha não se limita a casos de “violência doméstica praticada pelo varão contra mulher e prole”.

Para restar configurada a violência doméstica e familiar em face da mulher e, por consequência, se justificar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha ao caso concreto, basta que a vítima seja do gênero feminino e que a conduta tenha sido praticada em determinadas circunstâncias (no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em relação íntima de afeto), sendo irrelevante a identidade do sujeito ativo da agressão.

...”

(TJSP, Apelação n. 990.10.024913-4, Relator Desembargador René Ricupero, j. em 29.07.10).

 

Há, ainda, mais um enfoque a merecer atenção na solução do conflito, posto que a incidência do mencionado diploma legal confere maior proteção à ofendida, em razão das medidas protetivas de urgência nela previstas, e do rigor mais acentuado em suas disposições materiais e processuais.

Depreende-se, portanto, que a opinio delicti deve ser formada no seio da Promotoria de Justiça dedicada ao combate da violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Diante do exposto, conhece-se deste incidente, dirimindo-o para declarar competir à Douta Suscitante a atribuição para intervir nos autos.

A controvérsia a respeito da incidência da Lei Maria da Penha, nos termos ora analisados, não colide com eventual opinião delitiva a ser deduzida pelo promotor natural, motivo por que não se afigura necessária a designação de outro membro ministerial para atuar em seu lugar.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155); parêntese nosso.)

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 28 de outubro de 2014.

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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