Conflito Negativo de Atribuição

 

Protocolado n.º 18.719/10

Autos n. 011012/09 – MM. Juízo do Juizado Especial Criminal Central da Comarca da Capital

Autor do fato: (...)

Suscitante: Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal da Capital

Suscitada: 1ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (CTB, ART. 303). INFRAÇÃO PENAL DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO, SALVO QUANDO PRESENTE ALGUMA DAS CIRCUNSTÂNCIAS LEGAIS DE AUMENTO DE PENA, FUNDADAS NO PARÁGRAFO ÚNICO DA DISPOSIÇÃO. OMISSÃO DE SOCORRO SEGUINTE AO ATROPELAMENTO. EXASPERANTE CONFIGURADA. INCOMPETÊNCIA RATIONE MATERIAE DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. ATRIBUIÇÃO AFETA AO DOUTO SUSCITADO.

1.     O crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, tipificado no art. 303 do CTB, constitui infração de pequeno potencial ofensivo (CF, art. 98, I e Lei n. 9.099/95, art. 61), já que sua pena máxima é de dois anos de detenção.

2.     Na hipótese de se verificarem quaisquer das circunstâncias previstas no parágrafo único da disposição legal, que remete às causas de aumento de pena do homicídio culposo de trânsito (CTB, art. 302, par. ún.), o teto punitivo extravasa o patamar previsto na Lei dos Juizados Especiais, tornando este órgão materialmente incompetente. No caso concreto, ao atropelamento seguiu-se evidente omissão de socorro. Por esse motivo, o dever funcional de examinar a causa incumbe ao Douto Suscitado.

Solução: conflito dirimido para declarar que a atribuição para oficiar no procedimento cumpre à 1.ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital.

 

 

Trata-se de inquérito policial instaurado para apurar supostos crimes tipificados nos arts. 303 e 305 do CTB, que teriam sido cometidos, em tese, por (...), no dia 8 de fevereiro de 2009, por volta de 06 horas, na Av. Cruzeiro do Sul, altura do n. 669, Canindé, nesta Capital.

O Douto Promotor de Justiça Criminal, entendendo que os delitos em tela constituem infrações de menor potencial ofensivo, requereu a remessa dos autos ao JECRIM (fls. 30, verso).

O Ilustre Representante Ministerial que os recebeu, entretanto, suscitou conflito negativo de atribuição, com o argumento de que a pena máxima supera o patamar de dois anos, em face de o investigado ter deixado de prestar imediato socorro à vítima, o que importa na exasperação do teto punitivo em metade, fazendo com que a competência não seja do Juizado Especial (fls. 34/35).

É o relatório.

De acordo com os elementos de informação contidos nos autos (fls. 02, 04, 08, 10 e 18), a indiciada evadiu-se do local sem prestar assistência à vítima, (...), após atropelá-la, provocando-lhe lesões de natureza grave (conforme o laudo de fls. 19).

A omissão de socorro seguinte ao atropelamento, assim, ficou plenamente comprovada, muito embora a investigada, ao ser ouvida, tenha aduzido nada saber sobre os fatos (fls. 25).

Consoante já decidiu anteriormente esta PGJ, em casos como o do presente:

“A doutrina, de forma unânime, e também a jurisprudência, firmaram entendimento no sentido de que as causas de aumento de pena devem ser consideradas em conjunto com a pena prevista em abstrato para se verificar a possibilidade de aplicação dos institutos da Lei n. 9.099/95. Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça aprovaram súmulas vedando a suspensão condicional do processo em casos de concurso de crimes em que a pena mínima, em abstrato, exceda um ano (súmulas n. 723 do STF e 243 do STJ). O mesmo raciocínio deve ser aplicado em relação ao conceito de infração de menor potencial ofensivo.

No caso em análise, o crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor sofre, em tese, um aumento de 1/2 decorrente do fato de o agente ter deixado de prestar imediato socorro à vítima – art. 303, par. único, cc. art. 302, par. único, III, do CTB. Assim, o montante máximo da pena é de 03 anos de detenção, tornando inviável a afirmação de que se trata de infração de menor potencial ofensivo.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu, diversas vezes, que o delito de embriaguez ao volante, por ter pena máxima de 03 anos, não constitui infração de menor potencial ofensivo. Nesse sentido, podem ser consultados os acórdãos referentes aos processos de habeas corpus nº 85.019 e 81.510. Dessas decisões resta claro que, o fato de o art. 291, par. único, do CTB, admitir a aplicação dos institutos previstos nos arts. 74, 76 e 88 da Lei n. 9.099/95 a referido crime, não o tornou infração de competência do JECRIM, tendo havido, inclusive, declaração de nulidade pelo desrespeito a tal entendimento. Assim, o mesmo raciocínio deve incidir em relação ao crime de lesão culposa, que só será considerado de menor potencial ofensivo quando sua pena máxima em abstrato não ultrapassar o montante de 02 anos, o que não acontece no caso em análise. É de se mencionar que, em diversos casos, o tema vem sendo trazido à baila no Estado de São Paulo como conseqüência da recente instalação dos JECRIMs, porém, em Estados onde tais Juizados já estavam instalados há tempos, a questão já havia sido suscitada e levada aos tribunais superiores que decidiram do modo acima citado.

FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, tratando também do tema, assim se pronunciou:

E se houver uma causa de aumento ou diminuição de pena, como proceder? (...) Pode parecer que o máximo cominado seja o limite maior da pena abstratamente  previsto no dispositivo legal. Em princípio é, mas, se em face de uma circunstância agregada ao delito-base, a pena, no seu grau máximo superar um ano (dois anos após o advento da lei n. 10.259/2001), afasta-se a competência do Juizado, mesmo porque o delito já não é o mesmo. (...) Esse aumento ou diminuição obrigatório é que fornece o justo limite da pena máxima cominada, correspondente àquilo que Carrara denominava “quantidade política do delito’ (Programma del corso di diritto criminale, v. 1, §§ 128 a 172). Se a causa de especial aumento de pena possibilitar a ultrapassagem do limite quantitativo da pena (...), a hipótese não pode ser levada ao Juizado, mesmo porque outro é o delito” (Comentários À Lei dos Juizados Especiais Criminais, Ed. Saraiva, ano 2000, p. 27)” (Protocolado MP n. 95.070/06 – PGJ/SP – Conflito de Atribuições).

Diante do exposto, dirimo o presente conflito para declarar que a atribuição para oficiar nos autos incumbe ao ilustre Suscitado.

Não se pode olvidar, como ensina PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, que, em conflitos de atribuição decididos pelo Procurador-Geral de Justiça: “a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (REGIME JURÍDICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL. São Paulo: Editora Verbatim, 2009. pág. 155; parêntese nosso).

 

              São Paulo, 10 de fevereiro de 2010.

 

 

 

                                            Fernando Grella Vieira

                                         Procurador-Geral de Justiça

 

 

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