Conflito Negativo de Atribuições

 

Protocolado nº 21.083/09

Suscitantes: Promotores de Justiça de Franco da Rocha

Suscitado: Secretário-Executivo da Promotoria de Justiça das Execuções Criminais da Capital

Assunto: dever de visita a estabelecimentos penais (Ato Normativo n. 560/08 - PGJ-SP)

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. ATO NORMATIVO 560/08 – PGJ. DEPRECAÇÃO DO DEVER DE VISITA A ESTABELECIMENTOS PENAIS LOCALIZADOS EM OUTRA COMARCA. EXCEPCIONALIDADE. OBSERVÂNCIA DE CRITÉRIOS ESTRITOS.

O dever funcional de realização de visita a estabelecimentos penais incumbe ao Promotor de Justiça que oficia nos feitos de execução penal relativos aos respectivos sentenciados (LEP, art. 68, par. ún. e Ato Normativo 560/08-PGJ, art. 1º).

A faculdade conferida pelo art. 2º, §1º, do citado Ato Normativo deve ser exercida de maneira pontual (isto é, não se pode transferir os deveres de visita por todo o ano) e em situações excepcionais. Caso contrário, converte-se em transferência de atribuições funcionais, em patente violação à indelegabilidade e improrrogabilidade da atuação ministerial.

A precatória expedida pelo Membro do Ministério Público, cuja natureza é de inegável ato administrativo, deve, ainda, conter o motivo, isto é, a razão concreta de sua elaboração e a correspondente motivação, ou seja, a exposição (ainda que sucinta) das razões de fato e de direito que a inspiraram.

A deprecata deve atender, ademais, ao interesse público, o que não ocorre quando se transfere o dever funcional de visita, o qual recairá sobre um único promotor de justiça, a quem incumbirá fiscalizar mensalmente diversos estabelecimentos penais.

 

Cuida-se de conflito negativo de atribuições suscitado pelos i. Promotores de Justiça de Franco da Rocha, em face do d. Secretário-Executivo da Promotoria de Justiça das Execuções Criminais da Capital.

Relatam os i. Suscitantes, em apertada síntese, que receberam carta precatória oriunda do d. Suscitado, em que este “transferiu”, durante todo o ano de 2009, o dever de realizar visitas mensais aos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha I e II ao 4º Promotor de Justiça da Comarca deprecada.

Argumentam, ademais, terem deliberado, em reunião extraordinária, suscitar a presente quaestio, salientando que a faculdade inserida no art. 2º, §1º, do Ato Normativo n. 560 – PGJ, de 04 de dezembro de 2008, deve ser exercida em caráter excepcional, “compreendida no exercício de função pública e não de direitos subjetivos” (fls. 03). Acrescentaram que o ato fora realizado sem a necessária motivação, o que impediria aferir o acatamento ao interesse público, o qual, segundo ponderaram, restou vulnerado. Aduziram, ainda, que a deprecata mostrou-se contrária ao princípio constitucional da eficiência administrativa e ao dever de boa administração. Isto porque a Comarca contém demanda excessiva de atuação ministerial em vista de numerosos problemas sociais, destacando a existência de diversas instituições, as quais exigem a constante presença fiscalizatória do Ministério Público. Informaram, outrossim, que existem sete estabelecimentos penais na cidade, mostrando-se impraticável que um só Promotor de Justiça efetue a visita mensal a todos eles (fls. 02/18).

É o relatório.

Assiste razão aos i. Suscitantes, com a devida vênia do d. Suscitado.

É preciso enfatizar que, do modo como atuou o i. Promotor de Justiça deprecante, não se pode falar em deprecação de dever funcional, mas de verdadeira cessão de parcela das atribuições inerentes ao cargo.

JOSÉ FREDERICO MARQUES, discorrendo acerca da natureza da precatória, pontifica que tal medida constitui:

“a delegação de um juiz a outro de igual categoria para que pratique ou mande executar, no território de sua jurisdição, um determinado ato processual” (Tratado de Direito Processual Penal. 1º vol. São Paulo: Saraiva, 1967. pág. 363; grifo nosso).

Da lição do saudoso mestre, aplicável à deprecata inserida na Lei Orgânica do Ministério Público Paulista (art. 106, §3º) e no Ato Normativo acima citado (art. 2º, §1º), extrai-se a conclusão de que tal instituto permite, tão somente, a delegação de ato ou dever funcional em  caráter pontual.

Não poderia o d. Membro do Parquet, portanto, “transferir” a responsabilidade funcional ao Promotor de Justiça deprecado, pelo ano inteiro.

Há, ainda, outros aspectos fundamentais a serem analisados.

A atitude do competente Suscitado baseou-se em Ato Normativo elaborado por força de decisão proferida pelo Colendo Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público de São Paulo (cf. protocolado n. 18.585/07).

Referido Ato dispõe, em seu art. 2º, caput, que:

“O dever funcional previsto neste ato incumbirá ao Promotor de Justiça com atribuição para oficiar nas execuções penais dos sentenciados recolhidos no respectivo estabelecimento”.

         Cuida-se de regra que se funda no art. 68, par. ún., da Lei n. 7.210/84 (Lei de Execução Penal), como aliás, consta dos considerandos da mencionada norma administrativa.

         O  § 1º do art. 2º do referido Ato, de sua parte, contempla a excepcional possibilidade de que o dever de visitas seja deprecado:

 “Quando o estabelecimento situar-se fora dos limites territoriais da Comarca ou do Foro Distrital em que atuar o Promotor de Justiça das Execuções Penais, seja da Capital ou do Interior, faculta-se-lhe deprecar, por carta, e-mail, fac-símile ou similar, o cumprimento do dever funcional de realização das visitas mensais”.

         Pois bem. Parece-nos evidente que tal faculdade há de ser exercida com prudência, razoabilidade, motivação prévia, excepcionalidade e, por óbvio, calcada no interesse público.

         Na hipótese vertente, a carta precatória expedida, em primeiro lugar, careceu de motivo e, à toda evidência, de motivação. Deveras, o documento anexado ao presente protocolado (fls. 30), contendo a deprecação do dever de visitas, não aponta a razão de sua elaboração. Menos ainda, expõem os fundamentos fáticos e jurídicos que o inspiraram.

         Some-se a isso a circunstância de que a atitude do nobre Suscitado não atende ao interesse público e sequer pode ser considerada razoável.

         É preciso observar que os estabelecimentos para os quais o dever funcional de visitas foi deprecado encontram-se a poucos quilômetros da Capital. A distância geográfica, embora não seja fator decisivo, há de ser sopesada no uso da faculdade inserta no art. 2º, §1º, do Ato Normativo multicitado.

         De outra parte, a quantidade de instituições penais localizadas na Comarca de Franco da Rocha indica que será inviável ao deprecado cumprir, mensalmente, seu dever de inspeção. Isto, ao certo, comprometerá a exigência de que o Ministério Público, em cumprimento ao art. 1º, inc. I, do Ato Normativo 560/08-PGJ, avalie “as condições gerais de funcionamento e habitabilidade dos estabelecimentos, particularmente no que concerne à segurança, à higiene, à salubridade, à assistência à saúde, à adequação dos regimes de execução de penas”.

         Deve-se sublinhar, igualmente, que o dever de visitas mensais destina-se, também, a “fornecer aos sentenciados, quando for o caso, esclarecimentos a respeito de seus direitos e benefícios relativos à execução da pena” (inc. II do art. 1º do Ato Normativo n. 560/08-PGJ).

Quando não realizado pelo Promotor de Justiça com atribuição para oficiar nos processos de execução, tal tarefa remanesce, evidentemente, comprometida. Isto somente vem a reforçar a ideia de que a deprecação do ato há de ser, sempre e sempre, excepcional, fundamentada e lastreada no interesse público. Assim, verbi gratia, quando há uma considerável distância física entre o estabelecimento prisional e a Comarca em que atua o respectivo Promotor das Execuções, demonstrando-se que, em determinado mês, diante de um volume expressivo de serviço a que não deu causa, não possa ele cumprir pessoalmente o dever de visita mensal, justificar-se-ia a expedição da precatória.

         Deve-se destacar, ademais, que a atitude padeceu de razoabilidade. Como assinala JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO:

“o princípio da razoabilidade tem sido usado pelo Supremo Tribunal Federal como pauta contra a arbitrariedade administrativa e do legislador, ora sob a forma de um simples mandado objetivo de justificação das distinções que promovem no âmbito de situações fáticas aparentemente semelhantes ou equivalentes ou para exceções a direitos fundamentais; ora como requisito de coerência da medida em relação ao sistema constitucional; ora como princípio geral da proporcionalidade ou como alguma de suas máximas; ora ainda como apelo à realidade ou à natureza das coisas, segundo ‘a presunção do que normalmente acontece’” (A Constituição Reinventada. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. pág. 819-820).

         Calha à lembrança de que o princípio da razoabilidade encontra-se expressamente contemplado na Constituição do Estado de São Paulo, consoante se nota em seu art. 111:

A administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público” (grifo nosso)

         Repise-se que o ato deprecado consubstanciou-se em verdadeira transferência de atribuições funcionais (algo que o Ato Normativo, à toda evidência, não autoriza), daí porque se mostrou desarrazoado.

         PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, nesse sentido, assevera que:

“...as funções do Ministério Público, cujo desempenho deva ocorrer em determinada comarca, cabem aos promotores de Justiça que ali estão em exercício e aos quais não remanesce a faculdade de transferi-las a outros membros do Ministério Público (indelegabilidade), nem sequer com o consentimento destes (improrrogabilidade)” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal. São Paulo: Verbatim, 2009. pág. 74)

Diante de tudo o quanto se expôs, dirimo o presente conflito para declarar que a atribuição do dever de visita, na hipótese concreta, há de permanecer no âmbito das funções ligadas ao i. Suscitado, não se justificando a expedição da carta precatória, nos termos em que elaborada. Cumpra-se. Publique-se a ementa.

São Paulo, 25 de fevereiro de 2009.

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

 

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