Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 28.977/12

Autos n.º 0020645-91.2010.8.26.0003 – MM. Juízo do DIPO 3 (Comarca da Capital)

Suscitante: 67.º Promotor de Justiça Criminal do Foro Central da Capital

Suscitado: 1.º Promotor de Justiça Criminal do Foro Regional do Jabaquara

Assunto: divergência quanto ao correto enquadramento dos fatos, com reflexos na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. DIVERGÊNCIA QUANTO AO CORRETO ENQUADRAMENTO DOS FATOS, COM REFLEXOS NA ATRIBUIÇÃO FUNCIONAL. VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL (CP, ART. 154 OU LEI N. 9.296/96, ART. 10). AGENTE QUE, NA CONDIÇÃO DE ADVOGADA, TERIA OBTIDO CÓPIAS DE AÇÃO JUDICIAL TRAMITANDO EM SEGREDO DE JUSTIÇA, JUNTANDO REFERIDOS DOCUMENTOS NOS AUTOS DE AÇÃO CÍVEL. CONFLITO CONHECIDO E DIRIMIDO EM FAVOR DA TESE SUSTENTADA PELO ILUSTRE SUSCITANTE.

1.     Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar a conduta de advogada, que teria obtido cópias de ação judicial tramitando em segredo de justiça, juntando referidos documentos nos autos de ação cível. Concluídas as diligências investigatórias, a Ilustre Representante Ministerial em exercício no Foro Regional do Jabaquara requereu o envio do expediente ao Juízo Comum, uma vez que lhe pareceu tratar-se de fato apenado com reclusão. O Douto Promotor de Justiça que o recebeu, todavia, em judiciosa manifestação, exarou opinio diversa, no sentido de que o ato se subsumiria ao art. 154 do CP, delito sancionado com detenção, motivo pelo qual suscitou conflito negativo de atribuição.

2.     A controvérsia haurida neste procedimento reside em estabelecer se a quebra de sigilo relativa a documentos contidos em processo que corre em segredo de justiça se enquadra no art. 10 da Lei n. 9.296/96 ou no art. 154 do CP. Quanto a este, pode-se dizer que sua objetividade jurídica radica-se na proteção da liberdade individual, notadamente no que concerne aos segredos da vida privada (CF, art. 5º, X). A ação nuclear consubstancia-se no ato de revelar, que tem o sentido de informar, dar conhecimento, desvendar a alguém um segredo. É preciso anotar que a conduta típica não se confunde com o ato de “divulgar”, presente no art. 153 do Código. A divulgação importa em comunicar o fato a um número indeterminado de indivíduos — trata-se de difundir o segredo, tornando-o conhecido não só a uma, mas a várias pessoas. A revelação, fulcro do delito em estudo, dá-se quando a informação acobertada de segredo é transmitida a outrem. Revelar significa, portanto, desvelar, delatar, dar conhecimento a terceiro, bastando, portanto, que uma só pessoa tome conhecimento do sigilo. O segredo configura toda a informação que não deve ser revelada a terceiros. Não se trata de proteger, contudo, toda e qualquer espécie de fato, mas somente aquele que apresente potencial para causar algum tipo de prejuízo. O Código exige, ainda, que o sujeito ativo tenha tomado conhecimento do segredo em virtude de função, ministério, ofício ou profissão. Trata-se da relação causal entre a atividade desempenhada e a ciência da informação protegida. O tipo penal somente incrimina o comportamento quando realizado “sem justa causa” (elemento normativo do tipo). Deve a revelação do segredo deter potencialidade lesiva, isto é, a ciência da informação sigilosa por parte de terceiros há de ter o condão de causar danos (de qualquer natureza, moral ou patrimonial, individual ou coletivo). A infração pode ser praticada por qualquer meio. O delito contém, em resumo, os seguintes elementos objetivos: a) segredo confiado em virtude de ofício, profissão, ministério ou função; b) revelação do segredo (§ 1º); c) ausência de justa causa; d) potencialidade de dano a alguém.

3.     No que toca à infração especial, isto é, àquela tipificada no art. 10 da Lei n. 9.296/96, esta somente se aperfeiçoa quando o agente realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

4.     Parece-nos que a esfera de incidência da referida norma incriminadora, como bem ponderou o Douto Suscitante, adstringe-se às informações decorrentes de dados obtidos em conversas telefônicas ou telemáticas interceptadas com autorização judicial, o que não ocorreu no presente caso.

5.     Registre-se que em incidentes da ordem do presente cumpre somente ao Procurador-Geral de Justiça definir a quem compete a responsabilidade de oficiar nos autos, sem, contudo, ingressar na análise acerca da presença de elementos mínimos, seja para o oferecimento de denúncia, seja para a elaboração de proposta de transação penal.

Solução: conhece-se do presente conflito, dirimindo-se-o para declarar que a atribuição para atuar no feito compete à Douta Suscitada.

 

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar a conduta de (...), a quem se atribui a prática, em tese, do crime de violação de sigilo profissional, uma vez que, na condição de advogada, teria obtido cópias de ação judicial tramitando em segredo de justiça, juntando referidos documentos nos autos de ação cível.

Concluídas as diligências investigatórias, a Ilustre Representante Ministerial em exercício no Foro Regional do Jabaquara requereu o envio do expediente ao Juízo Comum, uma vez que lhe pareceu tratar-se de fato apenado com reclusão (fls. 426).

O Douto Promotor de Justiça que o recebeu, todavia, em judiciosa manifestação, exarou opinio diversa, no sentido de que o ato se subsumiria ao art. 154 do CP, delito sancionado com detenção, motivo pelo qual suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 430/434).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que a presente remessa assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso, de modo que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe o dever de oficiar nos autos.

Pois bem.

Assiste razão ao Douto Suscitante, com a devida vênia da Ilustre Suscitada.

A controvérsia haurida neste procedimento reside em estabelecer se a quebra de sigilo relativa a documentos contidos em processo que corre em segredo de justiça se enquadra no art. 10 da Lei n. 9.296/96 ou no art. 154 do CP.

Quanto ao último, pode-se dizer que sua objetividade jurídica radica-se na proteção da liberdade individual, notadamente no que concerne aos segredos da vida privada (CF, art. 5º, X).

A ação nuclear consubstancia-se no ato de revelar, que tem o sentido de informar, dar conhecimento, desvendar a alguém um segredo. É preciso anotar que a conduta típica não se confunde com o ato de “divulgar”, presente no art. 153 do Código. A divulgação importa em comunicar o fato a um número indeterminado de indivíduos — trata-se de difundir o segredo, tornando-o conhecido não só a uma, mas a várias pessoas.

A revelação, fulcro do delito em estudo, dá-se quando a informação acobertada de segredo é transmitida a outrem. Revelar significa, portanto, desvelar, delatar, dar conhecimento a terceiro, bastando, portanto, que uma só pessoa tome conhecimento do sigilo.

O segredo configura toda a informação que não deve ser revelada a terceiros. Não se trata de proteger, contudo, toda e qualquer espécie de fato, mas somente aquele que apresente potencial para causar algum tipo de prejuízo. A lei penal não tutela frivolidades. Se o agente conta para alguém detalhe irrelevante da vida íntima do ofendido, cuja ciência teve em razão de sua atividade profissional, não há crime algum, até porque de minimis non curat praetor.

O segredo pode até consubstanciar um fato de natureza criminosa, como ocorre com o cliente que contrata um advogado para sua defesa e confessa-lhe a prática de um crime.

O Código exige que o sujeito ativo tenha tomado conhecimento do segredo em virtude de função, ministério, ofício ou profissão.

Trata-se da relação causal entre a atividade desempenhada e a ciência da informação protegida.

Entende-se por função a atividade de caráter público, a qual apresenta vínculo com o Estado (em sentido lato). O escrevente do juízo, por exemplo, não pode revelar informação privada conhecida no curso de audiência de separação judicial em que oficiou. No que toca aos detentores de função pública, é necessário verificar se ocorre o chamado “sigilo funcional”. Em caso afirmativo, o delito praticado pelo servidor público não será o do art. 154, mas o do art. 325 do CP. Nesse caso, como esclarecia Nélson Hungria, “deve tratar-se de segredo de interesse público, pois a violação de segredo privado, ainda que obtido ratione officci, constitui o crime previsto no art. 154” (Comentários ao Código Penal, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1959, v. IX,  p. 397).

O ministério consiste na atividade de natureza eclesiástica ou assistencial. O sacerdote, por exemplo, não pode revelar aquilo que soube por meio da confissão do fiel.

O ofício identifica-se como a atividade de cunho predominantemente manual. A empregada doméstica não há de comunicar a terceiro dados da vida particular de seus patrões, dos quais tomou conhecimento em razão de seu ofício.

A profissão, por derradeiro, constitui aquela de caráter preponderantemente intelectual. É o caso, por exemplo, dos profissionais liberais. O advogado tem o dever de manter segredo dos fatos que tenha conhecimento no desempenho de seu mister. O mesmo se aplica ao médico ou ao psicólogo.

 O tipo penal somente incrimina o comportamento quando realizado “sem justa causa” (elemento normativo do tipo). A conduta será atípica pela presença de justa causa quando se tratar da comunicação às autoridades de crime de ação pública (CPP, art. 5º, § 3º), da defesa de direito ou interesse legítimo (p. ex., provar a inocência de alguém em processo criminal), no testemunho prestado em juízo (desde que haja a anuência da pessoa a quem o sigilo aproveite e o agente queira depor — CPP, art. 207) e na comprovação de crime ou sua autoria (CPP, art. 240, § 1º, f).

Do mesmo modo, há justa causa quando o profissional atende a requisição judicial, como na ordem para apresentação de ficha clínica de atendimento hospitalar visando elaboração de exame de corpo de delito.

A justa causa ocorrerá, ademais, sempre que o desvelo da informação secreta encontrar respaldo em alguma excludente (de ilicitude ou de culpabilidade). Imagine-se o médico que revela o diagnóstico de seu paciente a outrem, fazendo-o para evitar que este seja contagiado por grave doença contraída por seu cliente (o profissional atuou em estado de necessidade de terceiro — CP, arts. 23, I, e 24). Pense-se, ainda, no profissional da Medicina que comunica às autoridades de saúde pública doença de notificação compulsória; ele agirá no estrito cumprimento de um dever legal — CP, art. 23, III — até porque, se não o fizer, cometerá ele próprio um crime (CP, art. 269).

Deve a revelação do segredo deter potencialidade lesiva, isto é, a ciência da informação sigilosa por parte de terceiros há de ter o condão de causar danos (de qualquer natureza, moral ou patrimonial, individual ou coletivo). Note-se que basta a potencialidade de produção de dano, não se exigindo a efetiva lesão ao direito de alguém.

A infração pode ser praticada por qualquer meio (crime de forma livre: oral ou escrito).

O delito contém, em resumo, os seguintes elementos objetivos: a) segredo confiado em virtude de ofício, profissão, ministério ou função; b) revelação do segredo (§ 1º); c) ausência de justa causa; d) potencialidade de dano a alguém.

No que toca à infração especial, isto é, àquela tipificada no art. 10 da Lei n. 9.296/96, esta somente se aperfeiçoa quando o agente realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Parece-nos que a esfera de incidência da referida norma incriminadora, como bem ponderou o Douto Suscitante, adstringe-se às informações decorrentes de dados obtidos em conversas telefônicas ou telemáticas interceptadas com autorização judicial, o que não ocorreu no presente caso.

Registre-se, uma vez mais, que em incidentes da ordem do presente cumpre somente ao Procurador-Geral de Justiça definir a quem compete a responsabilidade de oficiar nos autos, sem, contudo, ingressar na análise acerca da presença de elementos mínimos, seja para o oferecimento de denúncia, seja para a elaboração de proposta de transação penal.

Em face do exposto, conhece-se do presente conflito, dirimindo-se-o para declarar que a atribuição para atuar no feito compete à Douta Suscitada.

Para que não haja qualquer menoscabo à sua independência funcional, caso a subscritora da manifestação de fls. 426 ainda se encontre no exercício do cargo, designa-se outro promotor de justiça para intervir na causa, devendo prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático. Publique-se a ementa. Cumpra-se.

 

São Paulo, 29 de fevereiro de 2012.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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