Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 46.132/14

Autos n.º 2.430/14 - MM. Juízo da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de São José dos Campos

Suscitante: Promotoria de Justiça da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de São José dos Campos

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal de São José dos Campos

Assunto: subsunção dos fatos ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. DENÚNCIA NÃO OFERTADA. DIVERGÊNCIA RELACIONADA À DEFINIÇÃO DA AUTORIDADE A QUEM INCUMBE FORMAR A OPINIO DELICTI. CRIME DE LESÃO CORPORAL QUALIFICADA (CP, ART. 129, §9.º). CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA SUBSUNÇÃO DO ATO À LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/06). RELAÇÃO AMOROSA QUE SE ESTENDEU DURANTE APROXIMADAMENTE DOIS ANOS E MEIO, DISSOLVIDA CERCA DE UM ANO E MEIO ANTES DOS FATOS. HIPÓTESE QUE SE ENQUADRA NA MENCIONADA LEI ESPECIAL.

1.      Cuida-se da apuração da conduta do ex-namorado da vítima, que a teria agredido e ofendido moralmente quando discutiam a respeito do pagamento de um empréstimo financeiro.

2.      A narrativa da ofendida revela que a atitude do investigado se baseou em violência de gênero, expressando possível dominação exercida pelo agente. Isto porque, embora tenha terminado o relacionamento há um ano e meio, segundo declararam, mantiveram relação sexual, sendo ela antes disso lesionada e injuriada pelo autor.

3.      O próprio ato motivador da discussão, consistente no empréstimo ao ex-namorado, sem causa aparente, de um talão de cheques, para que este emitisse as cártulas, sugere a persistência de uma relação de superioridade.

4.      O fato se enquadra, portanto, no conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher, para efeito de incidência da Lei n. 11.340/06. De acordo com seu art. 5.º: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Os incisos do dispositivo deixam claro que o fato pode se dar no âmbito da “unidade doméstica” (inc. I), no bojo “da família” (inc. II) ou em “qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação” (inc. III). As características do comportamento, consoante narradas pela vítima, sugerem a presença do inciso III do art. 5.º da Lei n. 11.340/06.

5.      O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em caso semelhante, já decidiu pela aplicação do multicitado Diploma (CC 100.654/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, 3.ª SEÇÃO, julgado em 25/03/2009, DJe de 13/05/2009). No mesmo sentido o entendimento do Colendo Superior Tribunal Federal (RHC 112.698/DF, Relatora Ministra CARMEN LÚCIA, julgado em 18/09/2012, DJe de 02/10/2012).

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, a fim de declarar que a atribuição para oficiar neste procedimento incumbe ao Douto Promotor de Justiça oficiante perante a Vara Especializada.

 

 

Cuida-se de procedimento instaurado visando à apuração da suposta prática do crime de lesão corporal qualificada (CP, art. 129, §9.º) cometido, em tese, por (...).

A Ilustre Promotora de Justiça Criminal, vislumbrando hipótese de aplicação da Lei n.º 11.340/06, pleiteou o encaminhamento do expediente à Vara de Violência Doméstica (fl. 26).

O Douto Representante Ministerial nele atuante, discordando do posicionamento de sua antecessora, suscitou conflito negativo de atribuições (fls. 31/34).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do feito a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com a Douta Suscitada, com a máxima vênia do Ilustre Suscitante; senão, vejamos.

A controvérsia reside em determinar se ao fato objeto desta investigação incide a Lei Maria da Penha; a resposta se afigura afirmativa.

Conforme se depreende dos elementos de informação coligidos, (...) manteve com o indiciado relacionamento amoroso durante aproximadamente dois anos e meio, separando-se cerca de um ano e meio antes dos fatos.

No dia 02 de maio de 2013, ela o procurou para pedir-lhe o pagamento de um empréstimo, momento em que o increpado dirigiu-lhe palavras ofensivas, a agrediu e, depois, manteve relação sexual com a vítima (fls. 04 e 05).

Realizado exame de corpo de delito no sujeito passivo, constatou-se a produção de lesões corporais de natureza leve (consoante o laudo pericial encartado a fl. 11).

O investigado, ouvido, negou a conduta imputada (fl. 18).

Do quadro exposto deve-se concluir que seu ato se subsume aos termos da Lei Maria da Penha.

A narrativa da ofendida revela que a atitude do investigado se baseou em violência de gênero, expressando possível dominação exercida pelo agente. Isto porque, embora tenha terminado o relacionamento há mais de um ano, segundo declararam, mantiveram relação sexual, sendo ela, antes disso, lesionada e injuriada pelo autor.

O próprio ato motivador da discussão, consistente no empréstimo ao ex-namorado, sem causa aparente, de um talão de cheques, para que este emitisse as cártulas, sugere a persistência de uma relação de superioridade fundada no gênero.

A definição de violência doméstica, com efeito, encontra-se no art. 5.º da citada Lei:

 

“Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

 

Os incisos do dispositivo deixam claro que o comportamento pode se dar no âmbito da “unidade doméstica” (inc. I), no bojo “da família” (inc. II) ou em “qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação” (inc. III; grifo nosso).

As características da atitude do sujeito sugerem a presença do inciso III do art. 5.º da Lei n. 11.340/06.

É de notar-se, neste diapasão, que ficou incontroverso seu relacionamento afetivo com (...), o qual perdurou por aproximadamente dois anos e meio.

O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em caso semelhante, já decidiu que:

 

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA PRATICADA EM DESFAVOR DE EX-NAMORADA. CONDUTA CRIMINOSA VINCULADA A RELAÇÃO ÍNTIMA DE AFETO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/06. APLICAÇÃO.

1. A Lei nº 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, em seu art. 5º, inc. III, caracteriza como violência doméstica aquela em que o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Contudo, necessário se faz salientar que a aplicabilidade da mencionada legislação a relações íntimas de afeto como o namoro deve ser analisada em face do caso concreto. Não se pode ampliar o termo – relação íntima de afeto – para abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico.

2. In casu, verifica-se nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade existente entre agressor e vítima, que estaria sendo ameaçada de morte após romper namoro de quase dois anos, situação apta a atrair a incidência da Lei nº 11.340/2006.

3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete/MG” (CC nº 100654/MG, Relatora Ministra LAURITA VAZ, 3ª SEÇÃO, julgado em 25/03/2009, DJe de 13/05/2009).

 

No mesmo sentido, o entendimento do Colendo Supremo Tribunal Federal:

 

“EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. VIOLÊNCIA COMETIDA POR EX-NAMORADO. IMPUTAÇÃO DA PRÁTICA DO DELITO PREVISTO NO ART. 129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA. (LEI N. 11.340/2006). IMPOSSIBILIDADE DE JULGAMENTO PELO JUIZADO ESPECIAL. 1. Violência cometida por ex-namorado; relacionamento afetivo com a vítima, hipossuficiente; aplicação da Lei n. 11.340/2006. 2. Constitucionalidade da Lei n. 11.340/2006 assentada pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal; constitucionalidade do art. 41 da Lei n. 11.340/2006, que afasta a aplicação da Lei n. 9.099/95 aos processos referentes a crimes de violência contra a mulher. 3. Impossibilidade de reexame de fatos e provas em recurso ordinário em habeas corpus. 4. Recurso ao qual se nega provimento.” (RHC 112.698/DF, Relatora Ministra CARMEN LÚCIA, julgado em 18/09/2012, DJe de 02/10/2012).

 

Diante do exposto, conhece-se deste incidente para dirimi-lo, declarando competir ao Douto Representante Ministerial atuante perante a Vara Especializada a atribuição para intervir nos autos.

Afigura-se desnecessária a designação de outro Representante Ministerial para atuar no feito.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155); parêntese nosso.)

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 1.º de abril de 2014.

 

Álvaro Augusto Fonseca de Arruda

Procurador-Geral de Justiça

em exercício

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

/aeal