Conflito Negativo de Atribuição

 

Protocolado n.º 59.582/10

Inquérito Policial n.º 1.055/06 – MM. Juízo da 3.ª Vara Criminal da Comarca de Araçatuba

Suscitante: Promotoria de Justiça Criminal de Araçatuba

Suscitada: 3.ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital

Assunto: foro competente para apuração de crime de receptação (CP, art. 180)

 

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. CRIME DE RECEPTAÇÃO (CP, ART. 180, CAPUT), USO DE DOCUMENTO FALSO (CP, ART. 304, C.C. ART. 298) E ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO AUTOMOTOR (CP, ART. 311). DIVERGÊNCIA ENTRE PROMOTORES DE JUSTIÇA ACERCA DA COMPETÊNCIA RATIONE LOCI. AGENTE QUE SUPOSTAMENTE ADQUIRIU O VEÍCULO NUM TERRITÓRIO E O CONDUZIU A OUTRO, ONDE FORA SURPREENDIDO NA DIREÇÃO DO AUTOMÓVEL, SENDO PRESO EM FLAGRANTE. APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTO DE IDENTIDADE FALSIFICADO AOS POLICIAIS. COMPETÊNCIA FIRMADA PERANTE O LOCAL DA APREENSÃO DOS OBJETOS MATERIAIS, DADO QUE NESTE FORO SE DEU A CONSUMAÇÃO DOS DELITOS.

1.      Na hipótese vertente, o indiciado foi surpreendido por policiais militares, em Araçatuba, ao volante de automóvel produto de roubo na Capital. Ao ser ouvido, afirmou que adquirira o bem em São Paulo. O local da suposta aquisição da res baseia-se tão somente nas palavras do suspeito, cuja alegação afigura-se desprovida de qualquer comprovação ou mesmo credibilidade.

2.      Há, na espécie, crime de receptação na modalidade típica “conduzir”, fato consumado em Araçatuba. Ainda que se pudesse reputar verdadeira a indicação do local da compra do bem, aplicar-se-ia o disposto no art. 71 do CPP, pois se trata de delito permanente (STJ, CC 88617, rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJU de 10.03.2008, p. 01; TJSP, Câmara Especial, CONFLITO DE JURISDIÇÃO n. 151.925-0/9-00, da Comarca de SÃO PEDRO, rel. Des. Maria Olivia Alves, j. em 29/10/2007).

3.      No que pertine ao uso de documento falso, seu summatum opus operou-se igualmente em Araçatuba, quando se exibiu a cédula de identidade espúria aos policiais. Mesmo que se pudesse atribuir ao sujeito colaboração na falsificação do documento, subsistiria tão somente o usum, em face do princípio da consunção (nesse sentido: TJSP, RT 800/599; TJSP, Apel. Crim. n. 849.769.3, julgada em 18.5.2006, relator Des. Pedro Gagliardi)

Solução: conflito dirimido para declarar que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Ilustre Suscitante.

 

Cuida-se o presente feito de conflito negativo de atribuição entre os Promotores de Justiça em exercício nas Comarcas de Araçatuba e da Capital, que divergem acerca do foro competente para apuração de crime patrimonial.

É o relatório.

O inquérito policial foi instaurado por ocasião da prisão, em flagrante delito, de (...), quando, em Araçatuba, foi surpreendido na condução de veículo automotor produto de roubo, dois meses antes, nesta Capital.

O agente se encontrava, ademais, com documento de identidade falsificado, verificando-se, outrossim, que o chassi do automóvel encontrava-se adulterado.

O indiciado, ao ser auscultado, declarou que adquirira a res em São Paulo.

Pois bem. Os elementos de prova acima sintetizados indicam a ocorrência, pelo menos, do crime de receptação dolosa (CP, art. 180), adulteração de sinal identificador de veículo automotor (CP, art. 311) e uso de documento falso (CP, art. 180).

No que toca ao delito contra o patrimônio, infração cuja consumação se protrai no tempo, de aplicar-se à espécie, o disposto no art. 71 do CPP, vez que se trata de crime permanente.

De acordo com o dispositivo legal indicado, em casos como o presente, cuja consumação supostamente atingiu mais de um foro, firma-se a competência territorial pela prevenção.

In casu, o juízo prevento, nos termos do art. 83 do CPP, é, sem dúvida, aquele em que atua o Douto Suscitante, ou seja, Araçatuba. Nesse sentido:                

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. RECEPTAÇÃO, NA MODALIDADE CONDUZIR OU TRANSPORTAR (CAMINHÃO), E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CRIMES PERMANENTES COMETIDOS EM MAIS DE UM ESTADO DA FEDERAÇÃO. FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA PELA PREVENÇÃO. ART. 78, II, C, C/C 83 DO CPP. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO.

1.   Na hipótese, o crime de receptação, praticado na modalidade de conduzir ou transportar o bem subtraído do seu proprietário, no caso, um caminhão, adquirindo assim a qualidade de permanente, e o de quadrilha (que já detém essa característica) ocorreram em mais de um Estado da Federação. Nesses casos, havendo Magistrados de igual jurisdição e não sendo possível escolher pela gravidade do crime ou pelo número de infrações, a competência deve ser fixada pela prevenção. Precedentes do STJ.

2.   Conhece-se do conflito, para declarar a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal de Inquéritos Policiais de Belo Horizonte/MG, o suscitado”.

(STJ, CC 88617, rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJU de 10.03.2008, p. 1; grifo nosso).

 

De ver, ainda, o seguinte julgado, sufragando a mesma tese:

 

CONFLITO NEGATIVO - Formação de quadrilha: roubos e recepção de carga - Crimes ocorridos em diversas Comarcas - Interceptação telefônica que culminou na identificação e prisão de alguns dos acusados – Ordem emanada pelo Juízo de São Pedro - Prisão ocorrida em Piracicaba - Crime permanente - Hipótese em que deve ser reconhecia a prevenção do Juízo que primeiro atuou no processo - Aplicação dos artigos 71 e 83 do Código de Processo Penal - Conflito procedente - Competência do Juízo suscitante.

(TJSP, Câmara Especial, CONFLITO DE JURISDIÇÃO n. 151.925-0/9-00, da Comarca de SÃO PEDRO, rel. Des. Maria Olivia Alves, j. em 29/10/2007; grifo nosso).

 

No que toca à infração contra a fé pública relativa ao documento de identificação, o fato deve se subsumir, segundo nos parece, ao delito tipificado no art. 304 do CP, consumado igualmente no foro em que atua o Douto Suscitante (Araçatuba).

Ainda que se possa eventualmente atribuir ao increpado participação na falsificação anterior (o que se cogita apenas ad argumentandum), esta constitui antefactum impunível, por força do princípio da consunção ou absorção.

Como se sabe, referido princípio tem como escopo afastar conflito aparente de normas, evitando a plúrima incriminação de comportamento produtor de lesão única ao bem jurídico (ne bis in idem). Por meio dele, quando uma infração é perpetrada como meio necessário, fase normal de preparação ou de execução de outra, fica por esta absorvida. Na hipótese vertente, dá-se a consunção do falso pelo usum, até porque neste exaure sua potencialidade lesiva.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu nesse sentido:

 

“FALSIDADE DOCUMENTAL – Falsificação de documento público e uso de documento falso – Condenação do agente pelas duas infrações – Inadmissibilidade – Falsificação que foi utilizada como crime-meio para atingir o desiderato do réu, qual seja, a utilização da contrafação – Aplicação do princípio da consunção (TJSP) – RT 800/599” (vide, ainda, TJSP, Apelação Criminal n. 849.769.3, julgada em 18.5.2006, Relator Desembargador Pedro Gagliardi).

 

O delito de adulteração de sinal identificador de veículo automotor, por fim, tem seu locus incerto. Poder-se-ia supor, como cogitou o competente Suscitado, ter sido a atitude praticada em São Paulo, sendo este, portanto, o local da consumação. Ocorre, todavia, que nada existe nesse sentido senão as incomprovadas alegações do indiciado. Deve-se ressaltar, uma vez mais, que o roubo se dera dois meses antes da prisão do suspeito em Araçatuba.

Mostra-se de todo conveniente, portanto, que o feito permaneça sob os cuidados da Promotoria de Justiça de Araçatuba, até para não se comprometer a colheita da prova e, via de consequência, a busca da verdade real.

Diante do exposto, dirimo o presente conflito para declarar que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Ilustre Promotor de Justiça Suscitante.

A designação de outro Representante Ministerial, na hipótese vertente, afigura-se desnecessária, haja vista não se vislumbrar qualquer menoscabo ao princípio da independência funcional.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição: a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (REGIME JURÍDICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL. São Paulo: Editora Verbatim, 2009. pág. 155); parêntese nosso.

Publique-se a ementa. Cumpra-se.

 

São Paulo, 17 de junho de 2010.

 

 

 

                        Fernando Grella Vieira

                        Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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