Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 63.031/15

Autos n.º 0016241-88.2013.8.26.0068 – MM. Juízo da 2.ª Vara Criminal do Foro de Barueri

Suscitante: Promotoria de Justiça Militar

Suscitado: Promotoria de Justiça de Barueri

Assunto: divergência quanto ao enquadramento dos fatos, com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. ATUAÇÃO DE POLICIAIS MILITARES QUE, NO DESEMPENHO DA FUNÇÃO, PRATICARAM, EM TESE, CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. CONTROVÉRSIA ACERCA DO ELEMENTO SUBJETIVO DO INJUSTO.  LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE AFASTADA NESTA FASE DA PERSECUÇÃO PENAL. MILICIANOS QUE AGREDIRAM INDIVÍDUO EMBRIAGADO, SUBJUGADO, DESFERINDO-LHE DIVERSOS GOLPES CONTUNDENTES NA REGIÃO ABDOMINAL E NA CABEÇA, QUE PROVOCARAM FRATURA DE COSTELAS, PERFURAÇÃO DE INTESTINO E TRAUMATISMO CRÂNIO-ENCEFÁLICO. DOLO EVENTUAL SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADO. ATRIBUIÇÃO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO TRIBUNAL DO JÚRI.

1.      Apurou-se que os milicianos foram acionados ao local, de maneira a apurar a postura do ofendido, o qual, em estado de embriaguez, agredira e ameaçara sua companheira.

2.      Chegando ao local, o sujeito passivo resistiu à prisão e desacatou os milicianos, os quais reagiram e o agrediram, de tal modo que, colhendo deitado, deflagraram inúmeros golpes em sua região abdominal e cabeça.

3.      Realizaram, então, a prisão em flagrante e encaminharam o sujeito passivo ao hospital, sendo ele, porém, liberado e, no dia seguinte, novamente hospitalizado, vindo a falecer.

4.      Os elementos de informação colhidos apontam, de modo uníssono a dinâmica dos fatos, no sentido de que o passamento do ofendido foi decorrência das agressões perpetradas pelos policiais militares. E as circunstâncias que gravitam em torno dos acontecimentos e, em particular, os dados acima retratados, revelam que não se pode afastar, nesta fase da persecução penal, a ocorrência de dolo eventual.

5.      Este resulta da quantidade e da sede dos golpes desferidos pelos investigados, que agrediram a vítima com chutes e golpes de tonfa, no abdome, rosto e cabeça, regiões vitais, conforme se percebe pelo laudo de exame necroscópico e pelas fotografias acostadas.

6.      De notar-se, ainda, que eram dois milicianos armados e um civil embriagado e, a despeito da superioridade física, numérica e psicomotora, deflagraram no sujeito passivo inúmeros e violentos golpes, todos eles com potencial letal.

7.      O dolus eventualis, como é cediço, encontra-se traçada em nosso Código Penal, na fórmula abstrata do art. 18, inc. I, in fine, calcada na atitude subjetiva de assumir o risco de produzir o resultado.

8.      O modo como atuaram os servidores públicos impõe reconhecer que previram a possibilidade de provocar a morte e, ainda assim, anuíram para com o resultado, mostrando indiferença. Conforme ponderava HUNGRIA, é o exame dos elementos externos do fato que revela a postura psíquica: “Desde que não é possível pesquisá-lo no foro íntimo do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente se traduz, de regra, no seu ato" (Comentários ao Código Penal, 5.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1955, vol. V, pág. 49).

9.      Ocorre o dolo eventual, ademais, quando: “o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 288).

10.  Os elementos carreados nos autos, consoante já se expôs, permitem concluir pela existência de crime doloso contra a vida.

11.  Calha à pena ponderar que, se dúvidas existissem quanto ao elemento subjetivo do injusto, estas se resolveriam, nesta fase da persecução penal, em favor da sociedade (vide CC 129.497/MG, Rel. Ministro ERICSON MARANHO – DESEMBARGADORCONVOCADO DO TJ/SP, 3.ª SEÇÃO, julgado em 08/10/2014, DJe de 16/10/2014).

 

Solução: conhece-se do presente conflito, declarando que a atribuição de atuar no procedimento incumbe ao primeiro Suscitado, designando-se, em respeito à sua independência funcional, outro promotor de justiça para oferecer a peça inaugural, bem como prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

 

 

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar as circunstâncias em que se deu a morte de INALDO GALDINO DA SILVA, que faleceu em virtude de agressões praticadas pelos policiais militares LUIZ LEME MACIEL JUNIOR e MARIO JUNIOR GOMES DA SILVA.

A Douta Promotora de Justiça Militar, ao receber o procedimento, vislumbrou o cometimento, em tese, de homicídio doloso (CP, art. 121, caput) e requereu seu envio ao Ilustre Representante Ministerial oficiante junto à Justiça Comum Estadual (fls. 165).

O Ilustre Promotor de Justiça do Júri, não vislumbrando a presença do animus necandi, requereu a remessa dos autos à Promotoria de Justiça Criminal (fls.243/244), tendo o Nobre Representante Ministerial nesta oficiante requerido a remessa à Justiça Castrense (fls. 245/246).

A Douta Membro do Parquet nele atuante, de sua parte, reafirmou seu entendimento de que a conduta subsumir-se-ia ao crime de homicídio doloso (CP, art. 121, caput), e suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 279/282).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que a presente remessa assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso, de modo que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe o dever de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com a Douta Suscitante, com a devida vênia dos Ilustres Suscitados; senão, vejamos.

 

Dos fatos

Pelo que se apurou, no dia 18 de abril de 2013, INALDO agrediu e ameaçou sua companheira CLEIDE SANTIAGO DOS SANTOS MENEZES, que fugiu e chamou a Polícia.

Com a chegada dos milicianos, a vítima, que estava embriagada, passou a desacatá-los e resistiu à prisão, sendo violentamente agredida pelos servidores, os quais desferiram diversos golpes contundentes, concentrados na região abdominal e na cabeça do sujeito passivo.

O ofendido foi, ainda, preso em flagrante e, juntamente com CLEIDE, receberam atendimento hospitalar, mas foram liberados, vindo INALDO a falecer no dia seguinte, justamente em decorrência das graves lesões sofridas.

 

Dos elementos de informação

        O laudo de exame necroscópico juntado (fls. 155 e verso) conclui que a vítima faleceu por “choque séptico/trauma abdominal fechado e traumatismo crânio-encefálico por ação de agente contundente”.

         A testemunha SOLANGE GALDINO DA SILVA, irmã do falecido, narrou que no dia dos fatos, INALDO agrediu CLEIDE, tendo esta fugido para a casa de vizinhos, que ligaram para a Polícia.

Quando os milicianos ingressaram na residência, a vítima tentou agredi-los, sendo por estes presa e agredida com chutes e golpes de cassetete.

Segundo SOLANGE, CLEIDE e INALDO foram levados ao Pronto Socorro, onde receberam atendimento médico e foram dispensados.

No dia seguinte, em virtude de dores, foi levado ao hospital, onde faleceu (fls. 95/96).

         PAULO GALDINO DA SILVA, irmão do ofendido, afirmou que INALDO estava embriagado no dia dos fatos e resistiu à prisão, sendo agredido pelos policiais militares (fls. 97).

CLEIDE, por sua vez, confirmou que INALDO estava embriagado e, após agredi-la e dizer que iria matá-la, passou a bater sua cabeça contra o chão, sendo que só conseguiu fugir após apertar o pênis da vítima com força.

A Polícia Militar foi chamada e INALDO discutiu com os policiais, que entraram à casa.

Nesse momento, CLEIDE passou a ouvir gritos da vítima e dos policiais, sendo que estes diziam para INALDO se levantar.

Após o acontecido, ele foi levado ao hospital, pois gemia de dor, mas foi liberado pela médica (fls. 98/102).

         Os policiais militares responsáveis pelas agressões, LUIZ LEME e MARIO JUNIOR, narraram que acompanharam a companheira da vítima até a residência, para que esta recuperasse sua bolsa. Lá chegando, INALDO começou a ofender moralmente CLEIDE e os milicianos.

Quando tentaram prendê-lo, a vítima passou a chutá-los, tendo sido necessário o uso de uma tonfa para contê-la.

Após os fatos, INALDO foi levado ao Pronto Socorro e liberado pelos médicos (fls. 163/165 e 166/167).

 

Do enquadramento legal

Ressalte-se, inicialmente, que a prova oral e pericial colhida foi uníssona quanto à dinâmica dos fatos, confirmando que a morte se deu em virtude das agressões perpetradas pelos policiais militares.

E as circunstâncias que gravitam em torno dos acontecimentos e, em particular, os dados acima retratados, revelam que não se pode afastar, nesta fase da persecução penal, a ocorrência de dolo eventual.

Este resulta da quantidade e da sede dos golpes desferidos pelos investigados, que agrediram a vítima com chutes e golpes de tonfa, no abdome, rosto e cabeça, regiões vitais, conforme se percebe pelo laudo de exame necroscópico (fl. 155) e pelas fotografias juntadas a fls. 122/127.

De notar-se, ainda, que eram dois milicianos armados e um civil embriagado e, a despeito da superioridade física, numérica e psicomotora, deflagraram no sujeito passivo inúmeros e violentos golpes, todos eles com potencial letal.

O dolus eventualis, como é cediço, encontra-se traçada em nosso Código Penal, na fórmula abstrata do art. 18, inc. I, in fine, calcada na atitude subjetiva de assumir o risco de produzir o resultado.

A descrição legal, todavia, não é considerada pela doutrina como fiel à essência do dolo eventual, como adverte, entre outros, HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (Lições de Direito Penal, A nova Parte Geral, 8.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1985, pág. 178).

O delineamento dessa modalidade de dolo ocorre quando o sujeito prevê o resultado como possível e o aceita ou com ele consente.

Há, portanto, a representação do evento, isto é, o desfecho gravoso passa pela mente do autor, aliada à sua aquiescência, ou seja, à indiferença quanto à sua produção. Como ensina DAMÁSIO DE JESUS:

 

“A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (Direito Penal, Vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2008, pág. 288).

 

Essa anuência à produção do resultado não é, jamais, verbalizada ou mesmo confessada. Não requer, ademais, consentimento explícito e formalmente demonstrado. O único meio de se aferir essa postura psíquica se dá por meio do exame do comportamento exterior. Jamais o indiciado, com efeito, irá declarar perante a autoridade que previu e não se importou com o evento. O inquérito policial sub examen não foge à regra.

Neste diapasão, o que se deve perquirir é identificar no pensamento do autor da conduta a seguinte postura psicológica:

 

"vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê no que der, vou praticar o ato arriscado" (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO. Princípios básicos de Direito Penal, 5.ª edição, 10.ª Tiragem, São Paulo, Saraiva, 2002, pág. 303).

 

Nessa forma de dolo, ensina LUIZ LUISI,

 

"o agente se propõe a determinado fim e na representação dos meios a serem usados, bem como na forma de operá-los, prevê a possibilidade de ocorrerem determinadas conseqüências. Quando o agente, apesar de prever essas conseqüências como possíveis - e embora não as deseje - tolera, consente, aprova ou anui na efetivação das mesmas, não desistindo de orientar sua ação no sentido escolhido e querido para atingir o fim visado, consciente da possibilidade das consequências de tal opção, o dolo, com relação às conseqüências previstas como possíveis, é eventual" (O tipo penal e a teoria finalista da ação, Porto Alegre, A Nação Editora, 1979, pág. 74[1]).

 

A prova examinada demonstra que os increpados não se deixaram dissuadir da execução do fato pela possibilidade, e até mesmo probabilidade, deles conhecida, de causar lesões possivelmente letais no ofendido, uma vez que o agrediram continuamente em regiões vitais do corpo, com golpes de cassetete e chutes.

O fato de terem conduzido a vítima ao pronto socorro não exclui a conduta anterior, uma vez que esta se mostrou apta a desencadear a morte de INALDO, e de fato a causou. Se arrependimento houve, portanto, este se revelou ineficaz.

Repita-se que o aplicador do Direito, na pesquisa do dolo eventual, deve se valer das circunstâncias exteriores.

De conferir-se, nesta linha, a clássica lição de NELSON HUNGRIA:

 

"Como reconhecer-se a voluntas ad necem? Desde que não é possível pesquisá-lo no foro íntimo do agente, tem-se de inferi-lo dos elementos e circunstâncias do fato externo. O fim do agente se traduz, de regra, no seu ato" (Comentários ao Código Penal, 5.ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1955, vol. V, pág. 49).

 

Há, destarte, elementos para se inferir o dolus eventualis.

Deve-se destacar, por derradeiro, que na presente fase, ou seja, quando do início da persecutio criminis in judicio, há de prevalecer o princípio in dubio pro societate.

A esse respeito, assim se pronunciou o Colendo Superior Tribunal de Justiça:

 

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. JUSTIÇA MILITAR E JUSTIÇA COMUM. FUNDADA DÚVIDA QUANTO AO ELEMENTO SUBJETIVO DO HOMICÍDIO DOLOSO. DISPARO DE ARMA DE FOGO NA DIREÇÃO DO VEÍCULO DA VÍTIMA. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO SOCIETATE”. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL.

- Os crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil, mesmo que no desempenho de suas atividades, serão da competência da Justiça comum (Tribunal do Júri), nos termos do art. 9.º, parágrafo único, do Código Penal Militar.

- No caso, somente com a análise aprofundada de todo o conjunto probatório a ser produzido durante a instrução criminal será possível identificar, categoricamente, a intenção do militar ao efetuar o disparo de arma de fogo no carro da vítima. Havendo fundada dúvida quanto ao elemento subjetivo, o feito deve tramitar na Justiça Comum, por força do princípio in dubio pro societate.

Precedentes.

Conflito negativo de competência conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da Vara de Caldas/MG (suscitado)”.

(CC 129.497/MG, Rel. Ministro ERICSON MARANHO – DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP, 3.ª SEÇÃO, julgado em 08/10/2014, DJe de 16/10/2014)

 

Nada impede, por óbvio, que durante o sumário da culpa a prova indique outro caminho, situação em que poderá se operar a desclassificação a que alude o art. 419 do CPP.

Conclusão

Diante do exposto, conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, a fim de declarar que a atribuição para oficiar nos autos compete ao Douto Promotor de Justiça oficiante no Júri.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, tendo em vista a opinio delicti exarada, designa-se outro Representante Ministerial para atuar na causa, facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n.º 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n.º 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 12 de maio de 2015.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Apud JESUS, Damásio de. O caso da morte do indígena Pataxó – Hã-Hã-Hãe Galdino Jesus dos Santos. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, out. 1997. Disponível em: <www.damasio.com.br>.