Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n.º 81.252/15

Autos n.º 0000671-14.2015.8.26.0514 – MM. Juízo da 2.ª Vara Criminal da Comarca de Francisco Morato

Suscitante: 1.º Promotor de Justiça de Francisco Morato

Suscitado: 1.º Promotor de Justiça de Jundiaí

Assunto: foro competente para apuração de crime de receptação (CP, art. 180)

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. DELITO DE RECEPTAÇÃO (CP, ART. 180, CAPUT). DIVERGÊNCIA ENTRE PROMOTORES DE JUSTIÇA ACERCA DA COMPETÊNCIA RATIONE LOCI. AGENTE QUE RECEBEU O VEÍCULO NUM TERRITÓRIO E O CONDUZIU A OUTRO, ONDE FOI PRESO EM FLAGRANTE. CRIME PERMANENTE, CUJA CONSUMAÇÃO ATINGIU MAIS DE UM FORO. APLICAÇÃO DA REGRA DE DETERMINAÇÃO DE COMPETÊNCIA DESCRITA NO ART. 71 DO CPP. CRITÉRIO DA PREVENÇÃO. ATRIBUIÇÃO MINISTERIAL VINCULADA AO LOCAL EM QUE O FEITO FOI INSTAURADO.

1. Na hipótese vertente, o indiciado foi surpreendido na Comarca de Jundiaí por policiais civis ao volante de automóvel produto de furto, com placas pertencentes a outro veículo. O increpado afirmou ter tomado o bem por empréstimo, em outro foro, sem contudo revelar de quem o obtivera.

2. Os elementos até agora coligidos dão suporte ao reconhecimento do crime de receptação, realizado integralmente em Francisco Morato, persistindo sua fase consumativa durante todo o período em que o agente conduziu o objeto (atingindo, então, o foro de Jundiaí). Significa dizer que se trata de delito permanente, motivo pelo qual tem aplicação à espécie o disposto no art. 71 do CPP: “Tratando-se de infração continuada ou permanente, praticada em território de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção”. Precedentes jurisprudenciais (STJ, CC n.º  88617, rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJU de 10.03.2008, p. 1; TJSP, Câmara Especial, CJ n.º  151.925-0/9-00, Comarca de SÃO PEDRO, rel. Des. MARIA OLIVIA ALVES, j. em 29/10/2007).

3. O juízo prevento é aquele que se antecipou aos demais na prática de algum ato ou medida relativa ao processo, ou seja, o de Jundiaí (CPP, art. 71).

Solução: conhece-se deste incidente para dirimi-lo, declarando que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Ilustre Suscitado.

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da conduta perpetrada por PAULO DA SILVA FELIX quando, no dia 14 de março de 2015, por volta de 22 horas e 10 minutos, foi surpreendido, na Rua Pirassununga, n.º  2.272, Bairro Vila Rami, na Comarca de Jundiaí, por policiais civis, na posse de veículo objeto de furto ocorrido em 13 de novembro de 2014, em Itu, constatando os agentes públicos que as placas reportavam-se a outro automóvel.

O agente, inquirido a respeito, afirmou ter tomado emprestado o automóvel de um amigo, do qual não quis revelar o nome.

O passageiro que acompanhava o suspeito no momento da abordagem asseverou nunca ter visto o increpado com aquele veículo, o qual soube, pelo próprio motorista, que teria sido emprestado de um amigo; naquele dia, ambos saíram de Francisco Morato, onde moram e trabalham, para passear em Jundiaí.

A Douta Promotora de Justiça inicialmente oficiante postulou o envio do feito à Comarca de Francisco Morato, eis que o local onde realizada a tradição do bem (fls. 42/43).

O Ilustre Representante Ministerial que o recebeu, contudo, discordou de sua antecessora, vislumbrando perpetrado o crime de receptação (CP, art. 180), de natureza permanente, devendo a competência para conduzir o feito, portanto, ser firmada pela prevenção; em consequência, suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 56/57).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do procedimento a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n.º  734/93.

Encontra-se configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitante, com a devida vênia da Ilustre Suscitada; senão, vejamos.

Os elementos de prova até agora coligidos indicam a ocorrência, pelo menos, do delito de receptação dolosa simples, cuja realização integral perpassou os territórios de Francisco Morato (suposto lugar da aquisição da res) e de Jundiaí (local da condução do objeto).

De aplicar-se à espécie, portanto, o disposto no art. 71 do CPP, vez que se trata de crime permanente.

De acordo com o dispositivo legal indicado, em matéria de infrações permanentes, cuja consumação atingiu mais de um foro, firma-se a competência territorial pela prevenção.

In casu, o juízo prevento, nos termos do art. 83 do CPP, é, sem dúvida, o de Jundiaí. Nesse sentido, conforme, inclusive, colacionado pelo Ilustre Suscitante:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. RECEPTAÇÃO, NA MODALIDADE CONDUZIR OU TRANSPORTAR (CAMINHÃO), E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CRIMES PERMANENTES COMETIDOS EM MAIS DE UM ESTADO DA FEDERAÇÃO. FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA PELA PREVENÇÃO. ART. 78, II, C, C/C 83 DO CPP. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO.

1.   Na hipótese, o crime de receptação, praticado na modalidade de conduzir ou transportar o bem subtraído do seu proprietário, no caso, um caminhão, adquirindo assim a qualidade de permanente, e o de quadrilha (que já detém essa característica) ocorreram em mais de um Estado da Federação. Nesses casos, havendo Magistrados de igual jurisdição e não sendo possível escolher pela gravidade do crime ou pelo número de infrações, a competência deve ser fixada pela prevenção. Precedentes do STJ.

2. Conhece-se do conflito, para declarar a competência do Juízo de Direito da Vara Criminal de Inquéritos Policiais de Belo Horizonte/MG, o suscitado”.

(STJ, CC 88617, rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJU de 10.03.2008, p. 1).

 

De ver, ainda, o seguinte julgado, sufragando a mesma tese:

 

CONFLITO NEGATIVO - Formação de quadrilha: roubos e recepção de carga - Crimes ocorridos em diversas Comarcas - Interceptação telefônica que culminou na identificação e prisão de alguns dos acusados – Ordem emanada pelo Juízo de São Pedro - Prisão ocorrida em Piracicaba - Crime permanente - Hipótese em que deve ser reconhecia a prevenção do Juízo que primeiro atuou no processo - Aplicação dos artigos 71 e 83 do Código de Processo Penal - Conflito procedente - Competência do Juízo suscitante.

(TJSP, Câmara Especial, CONFLITO DE JURISDIÇÃO n. 151.925-0/9-00, da Comarca de SÃO PEDRO, rel. Des. MARIA OLIVIA ALVES, j. em 29/10/2007).

 

Diante do exposto, conhece-se deste incidente para dirimi-lo, declarando que a atribuição de oficiar nos autos incumbe à Ilustre Promotora de Justiça Criminal de Jundiaí.

A designação de outro Representante Ministerial, na hipótese vertente, afigura-se desnecessária, haja vista não se vislumbrar qualquer menoscabo ao princípio da independência funcional.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (REGIME JURÍDICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL. São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155); parêntese nosso.

 

Publique-se a ementa. Cumpra-se.

 

São Paulo, 16 de junho de 2015.

 

                        Márcio Fernando Elias Rosa

                        Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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