Protocolado nº 0009448/09 – Conflito de Atribuições

Autos nº 526.01.2008.014104-5/000000-000 – 2ª Vara Judicial da Comarca de Salto.

Indiciados: (...) e (...)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Salto

Suscitado:  4º Promotor de Justiça de Moji das Cruzes

 

 

                                      Falso testemunho cometido por  intermédio    de

                                      carta-precatória.    Competência do juízo  depre-

                                      cante, que terá condições de aferir  a ocorrência

                                     ou não da mendacidade e suportará eventual da-

                                     no ou perigo de dano à administração da Justiça.

                                   

                                     

 

                                      Cuida o presente protocolado de inquérito policial que busca apurar eventual crime de falso testemunho praticado por (...) e (...), por ocasião de suas respectivas oitivas perante o r. Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Moji das Cruzes, nos autos de carta-precatória expedida pelo r. Juízo da 1ª Vara Judicial da Comarca de Salto.

                                     

                                      O douto Promotor de Justiça em exercício na Comarca de Moji das Cruzes declinou de sua atribuição e requereu a remessa dos autos à Comarca de Salto, onde tem trâmite o feito que ensejou a expedição da deprecata (fls. 138/141).

 

                                      Por sua vez, a insigne Promotora de Justiça de Salto suscitou conflito negativo de atribuições, por entender que a competência para apuração dos fatos é da Comarca onde o falso foi prestado, nos termos do que estabelece o artigo 70 do Código de Processo Penal (fls. 145/148).

 

                                      É a síntese do necessário.

 

                                      O crime de falso testemunho pode ser classificado como delito próprio e de mão própria, que se consuma no momento em que a testemunha, o tradutor ou intérprete lança sua assinatura no termo de depoimento em que fez afirmação falsa, negou a verdade, ou absteve-se de relatar fato juridicamente relevante, em inquérito policial, processo judicial, procedimento administrativo, juízo arbitral ou em comissão parlamentar de inquérito, com o escopo de atentar contra a administração da Justiça.

 

                                      Assim, embora o crime se consume com o fecho do depoimento, o foro competente para o processo e julgamento do testemunho falso é sempre o do lugar em que se cria a situação de perigo de dano à administração da Justiça, no caso analisado, o juízo deprecante.

 

                                      Como destacado por Antonio Carlos da Ponte, “ao ordenar a expedição de precatória, para a oitiva de testemunhas em outra comarca, delega o juiz funções que lhe são próprias, sem, contudo, abrir qualquer exceção ao princípio da indeclinabilidade da jurisdição. Tal circunstância, avaliada perfunctoriamente, aliada ao fato de o crime em apreço possuir natureza formal e instantânea, e a própria regra geral da competência estampada no artigo 70 do Código de Processo Penal, pode levar a uma conclusão totalmente equivocada, ao analisar-se a situação apontada, ou seja, de que o juízo deprecado é o competente para análise e julgamento do crime de falso testemunho praticado”.[1]

 

                                      É, aliás, o que sustenta a doutrina italiana, que entende que a competência territorial para o delito de falso testemunho cabe ao juiz em cujo lugar o crime se consuma. Aduz Vicenzo Manzini, “questa regola vale anche nel caso in cui la falsitá sia commessa in un atto probatorio delegato o richiesto a magistrato diverso da quello del luogo in cui pende l’istruzione o il giudizio”.[2]

 

                                      Ocorre, que a solução que melhor se harmoniza com o espírito de nosso Código de Processo Penal é a que atribui competência ao juízo deprecante, responsável pelo desfecho da causa que ensejou a expedição da deprecata.

 

                                      Como é sabido, o crime determina verdadeiro alarma no lugar onde se verificou sua perpetração, ou ao qual trouxe conseqüências. A intranquilidade pública resulta não só do receio de que, não punido, o agente repita seu comportamento, mas também do temor de que o mau exemplo produza frutos, e outros indivíduos sem uma verificação próxima, no tempo e no espaço, das reações do público, para punição do criminoso, também se lancem na prática de infrações idênticas ou semelhantes.[3]

 

                                      Analisando detidamente a questão enfatiza Ricardo Levene que “el dano producido por la falsedad no adquiere en realidad consistencia hasta que la conoce el juez exhortante. En ese momento, el elemento daño asume forma concreta y recién puede considerarse que ha producido sus efectos el delito. El juez delegado viene a ser solamente um transmisor, um vehículo de interrogación del otro magistrado, ante quien el testigo, por medio del juez exhortado, presta declaración... La falsa declaración es cierto que se efectua ante el juez delegado, pero el delito de falso testemonio no se perpecciona hasta el momento que aquella es conecida por el juez del asunto. Efectivamente, sólo entonces surge la posibilidad de que la justicia sea desviada de sus rectas soluciones”.[4]

 

                                      Não se deve olvidar, que o crime de falso testemunho prestado em carta-precatória causará malefícios, pelo alarma que dele resulta, não no local da infração, mas naquele em que tramita a causa. Ademais, o juízo deprecado, na quase totalidade das vezes, não possui elementos para aquilatar a sinceridade da testemunha. Tal aferição é feita, geralmente, pelo juízo deprecante, ao qual incumbe o movimento inicial, nos termos do artigo 211 do Código de Processo Penal.

 

                                      “De fato, seria um contra-senso atribuir-se ao juiz da causa a iniciativa do processo e, ao mesmo tempo, retirar-lhe a competência para esse mesmo processo, competência que, conquanto se deva orientar pela regra do artigo 70, se regula também pela conexão e pela prevenção. Pela conexão, quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influi na prova de outra infração (artigo 76, inciso III); pela prevenção, quando um juiz é o primeiro a tomar conhecimento dos fatos com seu caráter criminoso.

 

                                      Ora, é iniludível, de um lado, a influência que sobre a prova do falso terão os elementos colhidos na causa principal; e, de outro, é o juiz da causa quem primeiro toma conhecimento dos fatos com seu caráter delituoso, e, nessas condições, o primeiro que pratica atos de jurisdição no processo”.[5]

 

                                      Em suma, não seria lógico que, praticado o falso testemunho quando do cumprimento de uma carta-precatória, ficasse o juízo deprecante, em que ocorrerão as nefastas conseqüências da inveracidade do relato, simplesmente impedido de coibir a repetição de repugnante ato, ficando, assim, na dependência de eventuais providências que viessem a ser tomadas por parte do juízo deprecado. Com certeza, não foi esse o objetivo do legislador ao vedar tal nociva prática à administração da Justiça.

 

                                      Diante de todo o exposto, dirimo o presente conflito de atribuições para declarar que compete a ilustre Promotora de Justiça de Salto a atribuição de atuar no feito, oferecendo eventual denúncia e oficiando em seus ulteriores termos.

 

 

                                      São Paulo, 10 de fevereiro de 2009.

 

 

                                           Fernando Grella Vieira

                                      Procurador-Geral de Justiça



[1] Falso Testemunho no Processo. São Paulo, Atlas, 2000, p. 42.

[2] Tratatto di diritto penale italiano. Turim, Utet, 1950. v. 5, p. 800.

[3] ESPÍNOLA  FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1945. v. 2, p. 75.

[4] El delito de falso testimonio. 2ª ed. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1962, p. 68.

[5] BICUDO, Hélio Pereira. O falso testemunho: problemas que suscita. Justitia, v. 8, p. 68, jan./mar. 1952.