Conflito Negativo de Atribuição

Processo nº 0063471-39.2013.8.26.0000

Autos n. 86/13 - MM. Juízo da 1.ª Vara Criminal do Foro Regional de Penha de França

Suscitante: Promotoria de Justiça Criminal de Penha de França

Suscitada: Promotoria de Justiça da Vara Regional Leste 1 de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher

Assunto: subsunção dos fatos ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO AMEAÇA (CP, ART. 147) E VIAS DE FATO (LCP, ART. 21). CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. CONDUTA PRATICADA POR IRMÃO EM FACE DA IRMÃ. INDÍCIOS DE QUE O COMPORTAMENTO É PERPETRADO DE MODO CONSTANTE E REITERADO. VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONFIGURADA. ATRIBUIÇÃO AFETA AO PROMOTOR DE JUSTIÇA OFICIANTE NA ESFERA DA VARA ESPECIALIZADA.

1. A Procuradoria-Geral de Justiça vem decidindo, na esteira do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que se deve conferir à Lei n. 11.340/06 interpretação restritiva. Por esse motivo, não basta tão somente que o sujeito passivo da infração seja do sexo feminino para justificar a incidência da legislação protetiva.

2. Há casos, frise-se, nos quais a violência de gênero pode ser reconhecida de plano, como ocorre com infrações envolvendo pessoas que mantêm ou mantiveram relação amorosa e, por óbvio, a vítima pertence ao sexo feminino. O mesmo se pode dizer de casos envolvendo estupro de vulnerável.

3. Nas demais situações, tais como as que envolvem irmãos, ascendentes e descendentes, cunhados, tios e sobrinhos, não se reconhece, de regra, situação regida pela Lei Maria da Penha, salvo se houver algum traço indicativo de que o comportamento decorre da submissão do homem contra a mulher.

4. Na hipótese em testilha, se cuida de comportamento reiteradamente cometido pelo investigado, denotando retratar violência de gênero, a ponto de justificar a aplicação da multicitada Lei especial.

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, declarando que a atribuição para oficiar incumbe ao Douto Promotor de Justiça responsável pelos feitos da Lei Maria da Penha.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de ameaça (CP, art. 147) e da contravenção penal de vias de fato (LCP, art. 21) cometidos, em tese, por (...) em face de sua irmã (...).

O Ilustre Promotor de Justiça oficiante junto à Vara Especializada, não vislumbrando aplicável à espécie a Lei n.º 11.340/06, postulou o encaminhamento do procedimento ao MM. Juízo Comum (fls. 23/25).

O Douto Representante Ministerial que o recebeu, discordando do posicionamento de seu antecessor, requereu que fosse suscitado conflito de competência (fls. 31/33), pleito este deferido (fls. 34/35).

O Eminente Desembargador SAMUEL JÚNIOR, Presidente da Colenda Seção de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado, em decisão monocrática, não conheceu do incidente, determinando a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP (fls. 46/49).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que se encontra devidamente configurado o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça, como explanado pela Augusta Corte Bandeirante.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitante, com a máxima vênia do Ilustre Suscitado.

Em breve síntese, narrou (...) que reside com seu irmão (...) na casa de seus genitores; este provocaria sempre discussões e já a agredira anteriormente.

No dia 23 de maio de 2012 iniciou-se nova contenda, durante a qual o autor apertou seu pescoço e golpeou-lhe com a cabeça na região de seu nariz. Em seguida a ameaçou, inclusive de morte.

No dia 10 de outubro do mesmo ano, tendo em vista que o indiciado se mostraria mais agressivo, não cessando as intimidações, a vítima ofereceu representação em face do agente (fls. 02/03).

(...), em suas declarações, confirmou os desentendimentos, mas negou a conduta imputada, asseverando que de fato chegou a segurar os braços da ofendida, mas para se defender. Afirmou que após tais acontecimentos a convivência entre ambos estaria harmônica (fl. 11).

Anote-se, de início, que esta Procuradoria-Geral de Justiça possui precedentes nos quais, em discussões envolvendo irmãos, afastou a incidência da Lei Maria da Penha, justamente porque o caso concreto não apresentava qualquer traço peculiar indicativo de violência de gênero.

Na presente hipótese, porém, outro é o cenário.

As atitudes concretas do investigado, confirmadas pela ofendida, traduzem mais do que um isolado entrevero entre familiares, mas clara ação lastreada em dominação de gênero.

O increpado, com efeito, segundo a narrativa do sujeito passivo, sempre provocava desentendimentos, e o agredira anteriormente, revelando, assim, sua postura de pretensa superioridade, certamente motivada por sua condição de pessoa do sexo masculino.

Calha à pena citar, nesta ordem de ideias, o escólio de MARIA BERENICE DIAS, que pondera devam os arts. 5.º e 7.º da Lei n. 11.340/06 ser interpretados conjugadamente, a fim de se extrair o conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher:

 

“Primeiro a Lei define o que seja violência doméstica (art. 5º): “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Depois estabelece seu campo de abrangência. A violência passa a ser doméstica quando praticada: a) no âmbito da unidade doméstica; b) no âmbito da família; ou c) em qualquer relação íntima de afeto, independente da orientação sexual” (A Lei Maria da Penha na Justiça – efetividade da Lei n. 11.340/06 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, pág. 40).

 

A autora prossegue na análise do citado conceito e afirma:

 

“Não só as esposas, companheiras ou amantes estão no âmbito de abrangência de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o pólo passivo da ação delituosa” (op. cit., pág. 41; grifo nosso).

 

Sob outra vertente, o pressuposto para a subsunção do fato à Lei Maria da Penha é a configuração de violência de gênero, fazendo-se necessário, destarte, detectar a prevalência no sujeito ativo de uma condição de superioridade, subjugando a ofendida.

Nesse sentido, o entendimento da Egrégia 13.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“...

Nota-se, portanto, que a aplicabilidade da Lei Maria da penha não se limita a casos de “violência doméstica praticada pelo varão contra mulher e prole”.

Para restar configurada a violência doméstica e familiar em face da mulher e, por consequência, se justificar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha ao caso concreto, basta que a vítima seja do gênero feminino e que a conduta tenha sido praticada em determinadas circunstâncias (no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em relação íntima de afeto), sendo irrelevante a identidade do sujeito ativo da agressão.

...”

(TJSP, Apelação n. 990.10.024913-4, Relator Desembargador René Ricupero, j. em 29.07.10).

 

Há, ainda, mais um enfoque a merecer atenção na solução do conflito, posto que a incidência do mencionado diploma legal conferirá maior proteção à ofendida, em razão das medidas protetivas de urgência nela previstas e do rigor mais acentuado em suas disposições materiais e processuais.

Depreende-se, portanto, que a opinio delicti deve ser formada no seio da Promotoria de Justiça dedicada ao combate da violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Diante do exposto, conhece-se deste incidente, dirimindo-se-o para declarar competir ao Douto Suscitado a atribuição para intervir nos autos.

A designação de outro promotor de justiça, na hipótese vertente, afigura-se desnecessária, haja vista não se vislumbrar qualquer menoscabo ao princípio da independência funcional.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155, parêntese nosso).

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 03 de outubro de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

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