Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n. 121.110/13

Autos n. 1.830/13 - MM. Juízo da Vara Central de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca da Capital

Suscitante: Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital – GEVID

Suscitada: 1.ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital

Assunto: subsunção dos fatos ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. MAUS-TRATOS (CP, ART. 136, “CAPUT”). VÍTIMA DO SEXO MASCULINO. INAPLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/06)

1.     O objeto central da discussão reside em saber se a conduta da agente, que cometeu, em tese, maus-tratos em face de seu filho, sofre a incidência da Lei Maria da Penha e, portanto, é de atribuição da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.

2.     Na hipótese concreta, mostra-se evidente a inaplicabilidade da mencionada Lei, uma vez que se cuida de ofendido do sexo masculino e, ainda que assim não fosse, inexistiu qualquer dado fático que possa indicar cuidar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero.

3.     Frise-se que as regras contidas na Lei n. 11.340/06 não podem ser estendidas analogicamente a homens vítimas de violência.

Solução: conhece-se do conflito suscitado para dirimi-lo e declarar que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Douto Suscitado.

                                                              

 

Cuida-se de procedimento instaurado para apurar a prática de crimes de maus-tratos (CP, art. 136) cometido, em tese, por (...) em face de seu filho (...).

Encerradas as providências de polícia judiciária, o Ilustre Promotor de Justiça Criminal requereu o encaminhamento do expediente ao Juizado Especial de Combate à Violência Doméstica (fls. 39).

A Douta Representante Ministerial nele atuante, de sua parte, suscitou conflito negativo de atribuição, de vez que se cuida de sujeito passivo do sexo masculino (fls. 40/43).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que a presente remessa assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso, de modo que não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

Com a devida vênia do Digno Suscitado, parece-nos que a situação retratada no inquérito não se subsume ao conceito de violência doméstica e familiar previsto na Lei Maria da Penha.

Isto porque, em primeiro lugar, cuida-se de vítima do sexo masculino e, além disso, inexistiu qualquer dado fático que possa indicar cuidar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero.

Deve-se acentuar, nesta ordem de ideias, que a Lei n. 11.340/06 enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência, seja física, econômica ou de qualquer natureza.

Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial requer, a uma, que alguém do sexo feminino figure como ofendida, e, ademais, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de outorgar a especial proteção ao sujeito passivo. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir nos seguintes julgados:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. CRIME CONTRA HONRA PRATICADO POR IRMÃ DA VÍTIMA. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito contra honra, envolvendo irmãs, não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica.

2. Sujeito passivo da violência doméstica, objeto da referida lei, é a mulher. Sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade.

2. No caso, havendo apenas desavenças e ofensas entre irmãs, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima que possa causar violência doméstica ou familiar contra a mulher. Não se aplica a Lei nº 11.340/06.

3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Governador Valadares/MG, o suscitado”. (CC 88.027/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008).

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AGRESSÕES MÚTUAS ENTRE NAMORADOS SEM CARACTERIZAÇÃO DE SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE DA MULHER. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas entre namorados não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade.

2. Sujeito passivo da violência doméstica objeto da referida lei é a mulher. Sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação.

2. No caso, não fica evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha. Sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas o ciúmes da namorada, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06.

3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete/MG”. (CC 96.533/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe 05/02/2009)

 

 

Deve-se acrescentar, igualmente, que não há qualquer inconstitucionalidade na legislação citada, por suposta violação ao princípio da isonomia.

Como destaca MARIA BERENICE DIAS,

 

“Leis voltadas a parcelas da população merecedoras de especial proteção procuram igualar quem é desigual, o que nem de longe infringe o princípio isonômico. (...). Aliás, é exatamente para pôr em prática o princípio constitucional da igualdade substancial, que se impõe sejam tratados desigualmente os desiguais. Para as diferenciações normativas serem consideradas não discriminatórias, é indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável. E justificativas não faltam para que as mulheres recebam atenção diferenciada...” (A Lei Maria da Penha na Justiça, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 55-56).

 

De fato, como pondera CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO em sua clássica obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade (São Paulo, Malheiros, 3ª ed., 10ª tir.):

 

“Supõe-se, habitualmente, que o agravo à isonomia radica-se na escolha, pela lei, de certos fatores diferenciais existentes nas pessoas, mas que não poderiam ter sido eleitos como matrizes do discrímen. Isto é, acredita-se que determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem escolhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação, pena de se porem às testilhas com a regra da igualdade.

Assim, imagina-se que as pessoas não podem ser legalmente desequiparadas em razão da raça, ou do sexo (...).

Então, percebe-se, o próprio ditame constitucional que embarga a desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo religioso e convicções políticas, nada mais faz do que colocar em evidência certos traços que não podem, por razões preconceituosas mais comuns em certa época ou meio, ser tomados gratuitamente como ratio fundamentadora de discrímen.” (p. 15, 17-18).

 

O consagrado jurista, então, propugna três critérios para se avaliar se o elemento discriminatório contido na Lei se coaduna com a Constituição Federal: 1) identificação do discrímen; 2) correlação lógica entre este e a disparidade no tratamento jurídico diferenciado; 3) consonância desta correlação lógica com “os interesses absorvidos no sistema constitucional”.

Na hipótese em estudo, o fator de discriminação é o sexo da vítima. O diferenciado tratamento conferido pela Lei guarda correspondência lógica, porquanto visa à proteção eficiente da mulher fragilizada em função da violência doméstica e familiar. Tal correlação lógica encontra total compatibilidade com os interesses absorvidos no sistema constitucional, notadamente com a proibição de proteção deficiente e com compromissos assumidos pelo Brasil em Tratados Internacionais relativos à matéria, ressaltando-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Decreto n. 4.377/02) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/96).

Não se pode olvidar que o Brasil, no ano de 2001, sofreu condenação junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington (EEUU), ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos), justamente por conta de omissão das autoridades nacionais com relação ao “Caso Maria da Penha”.

Sublinhe-se, derradeiramente, que a extensão das normas restritivas de liberdade previstas na Lei n. 11.340/06 para fora de seu âmbito, de modo a alcançar sujeitos passivos do sexo masculino, embora se funde em louvável e justa preocupação judicial, caracterizaria analogia in malam partem, ofendendo o princípio da estrita legalidade penal (CF, art. 5.º, inc. XXXIX).

Diante do exposto, conheço deste incidente para dirimi-lo, a fim de declarar competir ao Douto Suscitado a atribuição para intervir nos autos.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, já que a presente decisão colide com sua opinio delicti, designo outro promotor de justiça para oficiar na causa, requerendo o que de direito.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

 

São Paulo, 15 de agosto de 2013.

 

   Márcio Fernando Elias Rosa

   Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

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