Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n. 139.297/13

Autos n. 2.427/13 - MM. Juízo da Vara Regional Sul 2 de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca da Capital

Suscitante: Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica – Núcleo Sul II (Santo Amaro)

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal do Foro Regional de Santo Amaro

Assunto: subsunção dos fatos ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. MAUS-TRATOS CIRCUNSTANCIADO (CP, ART. 136, §3.º). CONDUTA PERPETRADA, EM TESE, POR GENITORA EM FACE DE SUA FILHA. INEXISTÊNCIA DE SITUAÇÃO CARACTERIZADORA DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO. INAPLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/06)

1.     A divergência estabelecida no caso diz respeito a definir se a atribuição para oficiar incumbe ao Promotor de Justiça Criminal ou ao Representante Ministerial em exercício no Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital.

2.     Cuida-se, na hipótese, de suposto delito de maus-tratos agravado (CP, art. 136, §3.º) cometido, em tese, por genitora em face de sua filha.

3.     Nota-se, no presente caso, que o elemento identificador da fragilidade do sujeito passivo não reside em seu sexo, mas em sua idade, pois se trata de criança com nove anos de idade sob o jugo do poder familiar.

4.     Na hipótese concreta, portanto, não há dado fático que possa indicar cuidar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero. A Lei Maria da Penha enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência decorrente da dominação histórica e social entre gêneros.

5.     Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial não se justifica pura e simplesmente porque uma pessoa do sexo feminino figurou como vítima, mas, além disso, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de se outorgar a especial proteção à mulher atingida no contexto doméstico ou familiar. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir em diversos julgados (CC n. 88.027, rel. Min. OG FERNANDES, 3.ª SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008; CC 96.533, rel. Min. OG FERNANDES, 3.ª SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 05/02/2009; HC n.º 175.816/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 5.ª TURMA, julgado em 20/06/13, DJe de 28/06/13).

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, a fim de declarar que a atribuição de oficiar nos autos incumbe ao Promotor de Justiça em exercício no âmbito do Juízo Comum.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de maus-tratos circunstanciado (CP, art. 136, §3.º) cometido, em tese, por (...) em face de sua filha (...).

O Ilustre Promotor de Justiça Criminal, vislumbrando hipótese a ser amparada pela Lei n.º 11.340/06, postulou o encaminhamento do procedimento à Vara Especializada (fl. 19).

A Douta Representante Ministerial que o recebeu, discordando do posicionamento de seu antecessor, suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 24/28).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do feito a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com a Douta Suscitante, com a máxima vênia do Ilustre Suscitado.

Isto porque não há qualquer dado fático que possa indicar cuidar-se de comportamento criminoso no qual houve violência de gênero.

Versa a hipótese em testilha sobre a apuração da prática do crime de maus-tratos cometido, em tese, por (...), quando agrediu sua filha (...).

Nota-se, assim, que o elemento identificador da fragilidade do sujeito passivo não reside em seu sexo, mas em sua idade, pois contava à época dos fatos com nove anos, sendo menor sob o jugo familiar.

Acentue-se, nesta ordem de ideias, que o Texto Normativo acima citado enfeixa diversas normas restritivas de liberdade individual, com o válido e necessário intuito de conferir proteção eficaz à mulher, atingida em sua condição de hipossuficiência, seja física, econômica ou de qualquer natureza.

Significa que a incidência das regras contidas na legislação especial não se justifica pura e simplesmente porque uma pessoa do sexo feminino figurou como vítima, mas, além disso, há que se encontrar no caso uma nota característica, traduzida na necessidade de se outorgar a especial proteção ao sujeito passivo. Essa vem sendo, inclusive, a interpretação dada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao tema, como se pode conferir nos seguintes julgados:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. CRIME CONTRA HONRA PRATICADO POR IRMÃ DA VÍTIMA. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito contra honra, envolvendo irmãs, não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica.

(...)”.

(CC 88.027/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe de 18/12/2008; grifo nosso)

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AGRESSÕES MÚTUAS ENTRE NAMORADOS SEM CARACTERIZAÇÃO DE SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE DA MULHER. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas entre namorados não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade.

(...)

3. No caso, não fica evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria da Penha. Sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas o ciúmes da namorada, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06. (...)”.

(CC 96.533/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/12/2008, DJe 05/02/2009; grifo nosso)

 

“CRIMINAL. HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 41 DA LEI Nº 11.340/06. NÃO VERIFICAÇÃO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RELAÇÃO FAMILIAR. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA. INTERPRETAÇÃO LITERAL DA NORMA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E CONCEDIDA.

(...)

IV. Para a aplicação da Lei Maria da Penha, é necessária a demonstração da motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima. Precedentes.

V. Embora o inciso II, do art. 5º, da Lei nº 11.340/06 disponha que a violência praticada no âmbito da família atrai a incidência da Lei Maria da Penha, tal vínculo não é suficiente, por si só, a ensejar a aplicação do referido diploma, devendo-se demonstrar a adequação com a finalidade da norma, de proteção de mulheres na especial condição de vítimas de violência e opressão, no âmbito de suas relações domésticas, íntimas ou do núcleo familiar, decorrente de sua situação vulnerável. (...)”.

(HC 176.196/RS, Rel. Ministro GILSON DIPP, 5.ª TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe de 20/06/2012; grifos nossos)

 

HABEAS CORPUS  IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. AMEAÇA. SOGRA E NORA. 3. COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE. LEI MARIA DA PENHA. ABRANGÊNCIA DO CONCEITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. RELAÇÃO DE INTIMIDADE AFETIVA. 4. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. 5. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.

(...)

2. A incidência da Lei nº 11.340/2006 reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade. Precedentes.

3. No caso não se revela a presença dos requisitos cumulativos para a incidência da Lei nº 11.340/06, a relação íntima de afeto, a motivação de gênero e a situação de vulnerabilidade. Concessão da ordem.

(...)

(HABEAS CORPUS n.º 175.816/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 5.ª TURMA, julgado em 20/06/13, DJe de 28/06/13; grifos nossos).

Diante do exposto, conhece-se deste incidente para dirimi-lo, declarando competir ao Douto Representante Ministerial atuante perante o Juízo Comum a atribuição para intervir nos autos.

Para que não haja menoscabo à sua independência funcional, já que a presente decisão colide com sua opinio delicti, designa-se outro promotor de justiça para oficiar na causa, requerendo o que de direito.

Faculta-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 13 de setembro de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

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