Conflito Negativo de Atribuição

Protocolado n. 178.776/13

Autos n. 1.430/11 - MM. Juízo do Juizado Central de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital

Suscitante: Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital

Suscitada: 1.ª Promotoria de Justiça Criminal Central da Capital

Assunto: subsunção do fato ao conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher com reflexo na atribuição funcional

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA INCIDÊNCIA DA LEI N. 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA). ESTUPRO DE VULNERÁVEL (CP, ART. 217-A) COMETIDO CONTRA VÍTIMA DO SEXO FEMININO. POSICIONAMENTO ATUAL DESTA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA. VARA ESPECIALIZADA COM APOIO MULTIDISCIPLINAR ADEQUADO PARA OFERECER MÁXIMA PROTEÇÃO À VÍTIMA. ATRIBUIÇÃO DA DOUTA SUSCITANTE PARA INTERVIR NO FEITO.

1.      Cuida-se a causa de suposto estupro de vulnerável perpetrado, em tese, pelo agente em face de criança com dez (ou onze) anos de idade.

2.      Os fatos ora examinados, muito embora mereçam destaque à luz da vulnerabilidade decorrente da pouca idade da vítima, devem ficar sob os cuidados da Vara Especializada. Isto porque, em primeiro lugar, conta esta com estrutura de apoio multidisciplinar adequada para conferir à pequena ofendida a necessária atenção, sem agravar-lhe, pelo strepitus fori, as deletérias consequências das supostas infrações cometidas. De mais a ver, o conceito de violência doméstica ou familiar contra a mulher, previsto na Lei Maria da Penha, alinha-se com a vertente de conferir aos sujeitos passivos atingidos por violência física, psíquica ou moral, quando pertencentes ao sexo feminino, máxima proteção, em harmonia com o que preconizam os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

3.      Deve-se acrescentar, ainda, que a Lei Maria da Penha encontra suas raízes em dois importantes documentos internacionais: a Convenção CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1979) e Convenção de Belém do Pará – Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica contra a Mulher (OEA, 1994). Ambas se referem, direta ou indiretamente, à necessidade de tratar os delitos sexuais contra mulheres, no âmbito doméstico ou familiar, independentemente da idade do sujeito passivo, como hipóteses de violência de gênero.

4.      A Convenção CEDAW assevera que a discriminação contra a mulher compreende, seja qual for a idade da ofendida: “toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, ou exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo” (Parte I, art. 1.º).

5.      A Convenção de Belém do Pará, de sua parte, contempla em seu texto a violência sexual contra a mulher e a proteção da vítima menor. De acordo com seu art. 2.º, tal situação se configura quando: “ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual” (art. 2.º, letra “a”, grifo nosso).

6.      O art. 9.º, sob outro giro, enfatiza que: “também será considerada sujeitada à violência a mulher gestante, deficiente, menor, idosa ou em situação socioeconômica desfavorável, afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade” (grifo nosso).

7.      Ainda no plano internacional, a Declaração de Pequim, assinada na 4.ª Conferência Mundial sobre as Mulheres: Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz a 15 de setembro de 1995, prevê como um dos compromissos: “assegurar a plena implementação dos direitos humanos das mulheres e das meninas como parte inalienável, integral e indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” (item 9, grifo nosso).

8.      Conclui-se, portanto, que o caso se subsume ao conceito legal previsto no art. 5.º da Lei n. 11.340/06. Nesse sentido, o acórdão proferido pela Egrégia 4.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Habeas Corpus n.º 0041500-32.2012.8.26.000 (Relator Desembargador EDISON BRANDÃO, j. em 15.05.2012).

Solução: conhece-se do presente conflito para dirimi-lo, declarando competir à Douta Suscitante a atribuição para intervir nos autos.

 

Cuida-se de investigação penal instaurada visando à apuração da suposta prática do crime de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A) cometido, em tese, por (...) em face de (...), à época dos fatos com dez ou onze anos de idade.

Durante o trâmite do procedimento, o MM. Juiz do DIPO 3 abriu vista dos autos ao Parquet, diante da criação do Juizado de Violência Doméstica (fl. 84).

O Ilustre Promotor de Justiça não se opôs ao encaminhamento do caso (fl. 85).

A Douta Representante Ministerial que passou a oficiar na Vara Especializada, não vislumbrando violência de gênero a ensejar a aplicação da Lei Maria da Penha, suscitou conflito negativo de atribuição (fls. 159/163).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que o endereçamento do expediente a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

Com a devida vênia da Douta Suscitante, não lhe assiste razão.

Trata-se o expediente destinado a apurar suposto estupro de vulnerável contra pessoa do sexo feminino perpetrado, em tese, por (...) em face de (...), ato que a própria vítima confirmou, admitindo que ambos mantiveram relação sexual (fls. 95/96).

Há, em tese, hipótese ensejadora de violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Isto porque, em primeiro lugar, o comportamento retratado se adequa à definição contida no art. 5.º, inc. I, da Lei n. 11.340/06:

 

“Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (...) I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”.

 

Deve-se acrescentar, ainda, que a Lei Maria da Penha encontra suas raízes em dois importantes documentos internacionais: a Convenção CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1979) e a Convenção de Belém do Pará – Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica contra a Mulher (OEA, 1994).

Ambas se referem, direta ou indiretamente, à necessidade de tratar os delitos sexuais contra mulheres, no âmbito doméstico ou familiar, independentemente da idade do sujeito passivo, como hipóteses de violência de gênero.

A Convenção CEDAW assevera que a discriminação contra a mulher compreende, seja qual for a idade da ofendida:

 

 “toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, ou exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo” (Parte I, art. 1.º).

 

A Convenção de Belém do Pará, de sua parte, contempla em seu texto a violência sexual contra a mulher e a proteção da vítima menor. De acordo com seu art. 2.º, tal situação se configura quando:

 

“ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual” (art. 2.º, letra “a”, grifo nosso).

 

O art. 9.º, sob outro giro, enfatiza que:

 

“também será considerada sujeitada à violência a mulher gestante, deficiente, menor, idosa ou em situação socioeconômica desfavorável, afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade” (grifo nosso).

 

Ainda no plano internacional, a Declaração de Pequim, assinada na 4.ª Conferência Mundial sobre as Mulheres: Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz a 15 de setembro de 1995, prevê como um dos compromissos:

 

“assegurar a plena implementação dos direitos humanos das mulheres e das meninas como parte inalienável, integral e indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” (item 9, grifo nosso).

 

Conclui-se, portanto, que a ação perpetrada se subsume à Lei n. 11.340/06.

Além disso, conta o órgão judicial específico com estrutura de apoio multidisciplinar adequada para conferir às ofendidas a necessária atenção, sem agravar-lhe, pelo strepitus fori, as deletérias consequências das supostas infrações cometidas.

Diante do exposto, conhece-se do incidente para dirimi-lo, declarando competir ao Douto Membro do Parquet atuante na Vara Especializada a atribuição para intervir nos autos.

A designação de outro Representante Ministerial, na hipótese vertente, afigura-se desnecessária, haja vista não se vislumbrar qualquer menoscabo ao princípio da independência funcional.

Como bem pondera PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN, examinando conflitos de atribuição:

 

“a exclusão de ambos (os Promotores de Justiça em litígio) só pode se dar em caráter excepcional, porque essa modalidade de controvérsia pressupõe, de ordinário, que a atuação caiba a uma das autoridades em dissídio. (...). É evidente que a livre convicção do promotor natural deve ser preservada, mas não ao custo de subtrair-lhe o caso em que lhe cabe atuar, pois o dever de agir, que porventura tenha, é irrenunciável, intransferível e insuscetível de ser eliminado por interpretação unilateral do órgão ao qual toca satisfazê-lo. (...). Somente há incompatibilidade com o desempenho funcional – e, portanto, inconveniência para a sociedade – se o pronunciamento anterior, na sua essência, traduz uma promoção de arquivamento ou envolve uma antecipada afirmação de que a demanda é inviável” (Regime Jurídico do Ministério Público no Processo Penal, São Paulo, Editora Verbatim, 2009, pág. 155, parêntese nosso).

 

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 22 de novembro de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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