Conflito negativo de atribuição

 

Protocolado n.º 39.059/14

Autos n.º 204/13 – MM. Juízo da Vara do Júri da Comarca de Ribeirão Preto

Suscitante: Promotoria de Justiça do Júri de Ribeirão Preto

Suscitada: Promotoria de Justiça Criminal de Ribeirão Preto

Assunto: divergência acerca do enquadramento legal da conduta

 

 

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO. DIVERGÊNCIA ACERCA DO ELEMENTO SUBJETIVO DO INJUSTO. HOMICÍDIO (CP, ART. 121) OU LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE (CP, ART. 129, §3º). ANIMUS LAEDENDI. SUJEITOS ATIVO E PASSIVO QUE, DEPOIS DE DISCUTIREM VERBALMENTE, EMPREENDERAM LUTA CORPORAL. O AGRESSOR, QUE ESTAVA DESARMADO, APÓS PROVOCAR A QUEDA DA VÍTIMA, PROCUROU PRESTAR-LHE ASSISTÊNCIA, REVELANDO NÃO TER ATUADO COM ANIMUS NECANDI. OFENDIDO HOSPITALIZADO, MORTO TRÊS MESES DEPOIS EM VIRTUDE DE COMPLICAÇÕES MÉDICO-CIRÚRGICAS. ATRIBUIÇÃO DA PROMOTORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL.

1.      O confronto crítico dos elementos de informação revela que o investigado em momento algum desejou ou assumiu o risco de produzir a morte do ofendido. A prova colhida demonstrou que o agente cessou as agressões tão logo a vítima caiu ao solo, prestando-lhe imediata assistência.

2.      Houvesse intenção de ceifar a vida do sujeito passivo, não teria o autor obstado os golpes depois de sua queda, pois este ainda se encontrava lúcido e com vida.

3.      Não se pode dizer sequer ter ocorrido dolus eventualis. Tal figura somente se pode inferir quando: “o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 288).

4.      A presença do liame causalístico entre o resultado letal e a conduta do suspeito, ainda que existente, não autoriza supor que o caso se insere dentre os delitos de competência do Tribunal Popular. O nexo de causalidade representa um liame físico, e, por si só, nada diz quanto ao elemento subjetivo do injusto. Este deve ser aferido mediante análise de dados concretos dos quais se possa interferir a postura psíquica do agente quanto ao resultado.

5.      Os elementos carreados nos autos, com a devida vênia do Ilustre Suscitado, não permitem concluir pela existência de crime doloso contra a vida. Cuidava-se tão somente de desentendimento entre conhecidos que entraram em luta corporal, sem o emprego de armas.

6.      Nada impede, por óbvio, que durante a instrução do processo afigure-se outra realidade fático-probatória, ensejando a aplicação do art. 384 do CPP e a consequente remessa ao Tribunal Popular. Por ora, contudo, essa medida não se justifica.

Solução: conhece-se do presente conflito, para o fim de dirimi-lo e declarar a atribuição para formar a opinião delitiva incumbe ao Douto Suscitado, designando-se outro promotor de justiça para preservação da independência funcional.

 

 

Cuida-se de investigação penal instaurada para apurar as circunstâncias que envolveram a morte de (...).

Pelo que se revelou, três meses antes do passamento o falecido travou discussão com (...) e, nesse contexto, foi gravemente ferido. Hospitalizado, faleceu em decorrência de complicações médico-cirúrgicas.

Concluídas as providências de polícia judiciária, o Douto Representante Ministerial requereu a remessa do expediente à Vara do Júri, por considerar existente relação de causalidade entre os golpes perpetrados pelo indiciado e óbito do ofendido (fls. 302/305).

O Ilustre Promotor de Justiça atuante junto ao Tribunal Popular, de sua parte, entendeu de modo diverso, aduzindo não ser possível vislumbrar animus necandi no comportamento do agressor; suscitou, via de consequência, o presente conflito negativo de atribuição (fls. 311/314).

Eis a síntese do necessário.

Há de se sublinhar, preliminarmente, que a vinda da causa a esta Chefia Institucional assenta-se no art. 115 da Lei Complementar Estadual n. 734/93.

Encontra-se devidamente configurado, portanto, o conflito negativo de atribuição entre promotores de justiça.

Como destaca HUGO NIGRO MAZZILLI, tal incidente tem lugar quando o membro do Ministério Público nega a própria atribuição funcional e a atribui a outro, que já a tenha recusado (conflito negativo), ou quando dois ou mais deles se manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusão às de outros membros (conflito positivo) (Regime Jurídico do Ministério Público, 6.ª edição, São Paulo, Saraiva, 2007, pág. 487).

Considere-se, outrossim, que em semelhantes situações, o Procurador-Geral de Justiça não se converte no promotor natural do caso; assim, não lhe cumpre determinar qual a providência a ser adotada (oferecimento de denúncia, pedido de arquivamento ou complementação de diligências), devendo tão somente dirimir o conflito para estabelecer a quem incumbe a responsabilidade de oficiar nos autos.

Pois bem.

A razão se encontra com o Douto Suscitante, com a devida vênia do Ilustre Suscitado.

A controvérsia que subjaz deste procedimento consiste em definir o elemento subjetivo do injusto; vale dizer, trata-se de determinar se (...) atuou com animus occidendi ou com animus laedendi.

O confronto crítico dos elementos de informação revela, em nosso sentir, que a última hipótese apresenta-se com elevado grau de segurança.

A prova colhida, com efeito, demonstrou que o suposto agente cessou as agressões na vítima tão logo ela caiu ao solo.

Em verdade, discutiam por questões de somenos importância e o averiguado desferiu um soco e um pontapé no sujeito passivo, o qual tombou e fraturou o fêmur.

Depois da queda, segundo depoimento de duas testemunhas presenciais, o increpado prestou assistência ao ofendido.

Nessa medida, como bem ponderou o Douto Suscitante, verifica-se que, mesmo vendo (...) vivo e subjugado, deixou de perpetrar novos golpes, indicando não ter atuado com o propósito de matá-lo ou mesmo assumido o risco de fazê-lo.

Acrescente-se que os envolvidos estavam desarmados.

Frise-se ausente, inclusive, o dolus eventualis. Tal figura somente se pode inferir quando:

 

“o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza” (DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal. Vol. 1. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 288).

 

Os elementos carreados nos autos, consoante já se expôs e com a devida vênia do Ilustre Suscitado, não permitem concluir pela existência de crime doloso contra a vida.

A presença do liame causalístico entre o resultado letal e a conduta do suspeito, ainda que existente, não autoriza supor que o caso se insere dentre os delitos de competência do Tribunal Popular. O nexo de causalidade representa um liame físico, e, por si só, nada diz quanto ao elemento subjetivo do injusto. Este deve ser aferido mediante análise de dados concretos dos quais se possa interferir a postura psíquica do agente quanto ao resultado.

Nada impede, por óbvio, que durante a instrução do processo afigure-se outra realidade fático-probatória, ensejando a aplicação do art. 384 do CPP e sua consequente remessa ao Tribunal Popular. Por ora, contudo, essa solução não se justifica.

Diante do exposto, assiste razão ao Douto Suscitante, motivo porque se declara competir ao Douto Promotor de Justiça oficiante perante o Juízo Comum a atribuição para atuar no procedimento.

Para preservação de sua independência funcional, determina-se seja outro membro ministerial designado para prosseguir neste feito, facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302 (PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006.

Expeça-se portaria designando o substituto automático.

Publique-se a ementa.

 

São Paulo, 17 de março de 2014.

 

 

Álvaro Augusto Fonseca de Arruda

Procurador-Geral de Justiça

em exercício

 

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