Conflito Negativo de Atribuições
Protocolado nº
38.620/09
Autos nº 050.08.085768-0
– MM. Juízo da Vara do Juizado Especial Criminal da Capital
Suscitante: Promotoria
de Justiça do Juizado Especial Criminal da Capital
Suscitada:
Promotoria de Justiça Criminal da Capital
Assunto: juízo
competente para apuração de tentativa de furto privilegiado
Ementa:
Conflito negativo de atribuições. Furto privilegiado tentado (CP, art. 155,
§2º, c.c. art. 14, II). Infração penal de menor potencial ofensivo. Atribuição
da Promotoria de Justiça do Juizado Especial Criminal.
1. Dentre os benefícios previstos em
lei para o furto privilegiado, o menos favorável ao agente consiste na
substituição da pena de reclusão pela de detenção. Referida benesse, com a
Reforma da Parte Geral havida em 1984, tornou-se inócua, tanto assim que não
tem qualquer aplicação prática.
3. Com a revogação tácita do
benefício consistente em substituição da reclusão pela detenção, a pena máxima
do furto privilegiado passa a ser de dois anos e oito meses. Na hipótese de
tentativa, incidirá outra causa de redução (CP, arts. 14, II e 68, par. ún.), o
que tornará o fato crime de menor potencial ofensivo.
Solução: conflito dirimido para
declarar que a atribuição para oficiar nos autos incumbe ao i. Suscitante, isto
é, à Promotoria dos Juizados Especiais Criminais.
Cuida-se de conflito negativo de atribuições em que os Doutos Promotores de Justiça em exercício na Promotoria de Justiça Criminal da Capital e na Promotoria do Juizado Especial Criminal de São Paulo divergem acerca do juízo competente para apuração de furto privilegiado tentado (CP, art. 155, §2º, c.c. art. 14, II).
É o relatório.
A questão, segundo nos parece, requer uma análise pormenorizada do dispositivo legal supracitado, inclusive por conta de decisões anteriores (e em sentido diverso da presente) proferidas pela Procuradoria Geral de Justiça.
1. Traços distintivos entre
reclusão e detenção – a crescente tendência à unificação das penas privativas
de liberdade
A história do Direito Penal Positivo brasileiro, há
mais de um século, tem sido a da progressiva eliminação das diferenças entre as
espécies de pena privativa de liberdade, notadamente a reclusão e a detenção.
No início do século, quando vigorava o Código Penal
de
Quando da edição do Código Penal, em 1940,
manteve-se a dicotomia, estabelecendo-se a reclusão como a mais grave,
distanciando-se da detenção porque: “1º) em regra, não admite a suspensão
condicional; 2º) comporta período inicial de isolamento diurno e remoção para
colônia; 3º) o trabalho não pode ser escolhido; 4º) implica penas acessórias e
medidas de segurança mais importantes e assíduas” (idem, ibidem. pág.
75).
Em 1984, por ocasião da Reforma da Parte Geral, os
juristas que compuseram a Comissão responsável pela elaboração do Anteprojeto,
ponderaram a respeito da manutenção dos traços distintivos, entendendo por bem
mantê-los, embora em menor número.
Eis o registro de RENÉ ARIEL DOTTI:
“Já ao tempo da elaboração do Código Penal brasileiro da Primeira
República, manifestavam-se as tendências de unificação das modalidades de
privação da liberdade, por influência da doutrina e de encontros internacionais
como os Congressos Penitenciários de Estocolmo (1878), de Paris (1895) e de
Praga (1930). Entre nós, uma proposta apresentada ao Ministro da Justiça, em
1972, visando a revisão de textos do Código Penal de 1969 no Título “Das
penas”, recomendava a adoção de uma só pena privativa de liberdade: a prisão. O
Anteprojeto foi elaborado por uma Comissão integrada por Manoel Pedro Pimentel,
Azevedo Franceschini, Prestes Barra, Limongi Neto e Penteado de Moraes (in
Manoel Pedro Pimentel, Estudos e pareceres de direito penal, 1973, pág.
24). A pena unitária de prisão foi instituída nos Códigos Penais da Alemanha
ocidental (§38) e de Portugal (art. 40º) bem como no Código Penal Tipo para a
América Latina (art. 42). Recentemente, assim também o fez o Código Penal do
Panamá (1982, art. 46, 1). (...). Mais de uma vez nos manifestamos a favor da
pena unitária de prisão (Bases e alternativas ao sistema de penas.
Curitiba, 1980. pág. 126). Mas a razão exclusiva dessa reivindicação tinha como
causa os “desvios e abusos na execução da pena de prisão” (Bases
e alternativas, cit., pág. 129 e s.), posto que “inexiste diferença entre
ambas (reclusão e detenção) na fase de cumprimento, o mesmo sucedendo com a
prisão simples...” (“O novo sistema de penas”, “in” Reforma Penal, 1985.
São Paulo: Saraiva. pág. 95-96).
No sistema do Código Penal, hodiernamente,
reduziram-se ainda mais as diferenças. Estas remanescem no tocante ao regime
inicial de cumprimento de pena (CP, art. 33), na possibilidade de imposição do
efeito secundário da condenação, consistente na incapacidade para o exercício
do poder familiar, tutela ou curatela (CP, art. 92) e na espécie de medida de
segurança aplicável ao fato (art. 97, caput, do CP).
No âmbito da legislação processual, ademais,
verifica-se com maior ênfase a tendência à unificação.
A Lei n. 11.719/08, ao reformular os procedimentos
comuns (ordinário e sumário), estabeleceu que estes se distinguem com base na
quantidade (pena máxima de quatro anos) e não mais a partir da qualidade da
prisão (reclusão ou detenção).
Não se pode olvidar, ainda, que o Projeto de Lei n.
4.208, de 2001, em trâmite no Congresso Nacional e já em adiantada fase,
contribuirá ainda mais com a uniformização, pois altera todo o Título IX, do
Livro I, do Código de Processo Penal, modernizando o tratamento da prisão
processual.
O art. 155, §2º, do Código Penal dispõe que:
“Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a
coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção,
diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”
O menor benefício decorrente do privilégio,
portanto, consiste na substituição da pena de reclusão pela de detenção.
O
que provocaria, em termos concretos, a concessão dessa benesse?
Para responder, é preciso recordar os traços
distintivos entre as espécies de pena privativa de liberdade: (i) o regime
inicial, (ii) a incapacidade para exercer o poder familiar, etc. e (iii) a
medida de segurança aplicável.
O efeito secundário da condenação consistente em
impedir o exercício do poder familiar, tutela ou curatela tem reduzidíssima
aplicação, haja vista que requer delito cometido contra filho, tutelado ou
curatelado. Ao menos na primeira hipótese, em que o sujeito passivo é
descendente do autor, o fato não será punível, em decorrência da isenção de
pena prevista no art. 181 do CP.
Deve-se considerar, ainda, que na imensa maioria
dos casos, o sujeito ativo da infração é penalmente imputável, o que afasta, de
maneira absoluta, a terceira diferença.
Conclui-se, então, que a substituição da reclusão
pela detenção, em termos práticos, impedirá o sujeito de iniciar o cumprimento
da pena em regime fechado. Dir-se-á que esta é uma diferença relevante; ocorre,
entretanto, que a aplicação do privilégio pressupõe que o agente seja
primário, situação na qual, de regra, somente se admitirá o regime aberto.
A inarredável conclusão, destarte, é que o
benefício consistente em substituir a pena de reclusão pela de detenção, na
verdade, é irrelevante.
3. Revogação tácita da
benesse em questão
Conclui-se, destarte, que, desde a Reforma da Parte
Geral promovida em 1984 e tendo em vista a constante tendência pela unificação
da pena de reclusão e de detenção, encontra-se tacitamente revogado o benefício
consistente em substituir uma pena de prisão por outra ao furto privilegiado.
4. Furto privilegiado
tentado é infração de menor potencial ofensivo
O privilegium no furto, destarte, permitirá
ao agente ter a pena reduzida de um a dois terços ou receber, tão somente, a
pena de multa.
Entre essas benesses, a menos favorável é, sem dúvida,
a primeira. Pode-se dizer, então, que a pena máxima do furto privilegiado
consumado é a do tipo básico (quatro anos de reclusão), reduzida no patamar
mínimo (um terço), o que totaliza dois anos e oito meses de reclusão.
Na hipótese de conatus,
incidirá, por força do art. 14, par. ún., c.c. art. 68, par. ún., ambos do CP,
uma segunda causa de diminuição, a qual, aplicada no piso (um terço), fará com
que a pena máxima a que fica sujeito o autor do fato seja inferior a dois
anos.
A infração penal, portanto, inserir-se-á na esfera
de competência dos Juizados Especiais Criminais, ex vi do art. 61 da Lei
n. 9.099/95.
5. Conclusão
Diante do exposto, dirimo o presente conflito para
declarar que a atribuição para atuar no feito incumbe ao i. Suscitante.
Para que não haja qualquer menoscabo à sua independência
funcional, designo outro promotor de justiça para oficiar nos autos,
facultando-se-lhe observar o disposto no art. 4-A do Ato Normativo n. 302
(PGJ/CSMP/CGMP), de 07 de janeiro de 2003, com redação dada pelo Ato Normativo
n. 488 (PGJ/CSMP/CGMP), de 27 de outubro de 2006. Expeça-se portaria.
São Paulo, 06 de abril de 2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
/aeal