NOTA TÉCNICA Nº013/2014

Interessado: Núcleo de Estudos Institucionais e Apoio Legislativo

Objeto: Projeto de Lei nº 7.868/ 2014

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Projeto de Lei nº 7.868/2014, de autoria do Deputado Federal André de Paula, busca a alteração de dispositivos do Código Penal, Código de Processo Penal, além de outras leis penais especiais.

Embora louvável a elaboração da proposição, sobretudo tendo em conta a sua justificativa, que afirma vir ela a “atender ao anseio popular de combate à violência, à corrupção e à impunidade”, verifica-se que a sua redação, em algumas hipóteses, padece de evidente inconstitucionalidade, além de atentar contra o interesse público e ir na contramão de direção da própria justificativa apresentada.

Vejamos:

 

DA EQUIPARAÇÃO INTEGRAL DOS DELITOS DE ROUBO E EXTORSÃO PARA EFEITO DE APLICAÇÃO DAS REGRAS DE CONCURSO DE CRIMES:

 

O artigo 9º do projeto de lei dispõe que:

 

“O artigo 158 do Decreto-lei 2.848 (Código Penal), de 07 dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art.158..................................................................................................................................................

§ 1º Aplicam-se, à extorsão, os § § 1º a 3º do artigo 157 deste Código.

§ 2º Quando se derem unidade de eventos ou contexto, a extorsão e o roubo serão tratados como crimes da mesma espécie, para efeito de aplicação das regras de concurso de crimes.”

 

As condutas descritas nos crimes de roubo e extorsão são condutas distintas, uma consistente na subtração, mediante violência e grave ameaça, de bem da vítima, o que configura roubo, outra, no constrangimento da ofendida, mediante violência e grave ameaça, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa com o intuito de obter vantagem econômica, o que caracteriza extorsão.

Para distinção entre referidos crimes é usualmente apontado como fator preponderante o da prescindibilidade ou não do comportamento do sujeito passivo. No roubo, haveria subtração, ou seja, somente conduta do agente, assumindo a vítima postura meramente omissiva. Na extorsão, a obtenção da vantagem econômica exigiria conduta ativa da vítima.

André Estefam ensina que a diferença entre os delitos em questão “reside, insista-se, na indispensabilidade da participação da vítima no êxito para a lesão ao patrimônio. Por esse motivo, há roubo nos dois casos citados [o ladrão pode apontar a arma de fogo à vítima e, depois de anunciar o roubo, tomar-lhe a bolsa ou determinar que ela a passe às suas mãos]; note-se que a atitude da vítima era dispensável; uma vez rendida, pouco importa se o agente pegou o objeto à força ou determinou que ela o entregasse. Haverá, por outro lado, extorsão, por exemplo, quando alguém, armado, determinar ao ofendido que se dirija a um caixa eletrônico e efetue o saque de determinada quantia em dinheiro. Nesse caso é indispensável a colaboração da vítima, mediante a inserção da senha eletrônica no terminal.” (Direito Penal, Parte Especial, Ed. Saraiva, 2ª edição,  pág. 413).

Nesse contexto, desarrazoado a equiparação de delitos tão diferentes, sobretudo para fins de aplicação do concurso de crimes que beneficiaria o agente sobremaneira, providência contrária ao estabelecido pelo presente projeto.

De fato, nos dias atuais, quando o agente pratica um roubo e uma extorsão, em um mesmo contexto fático, as penas dos delitos são somadas, ante a incidência do concurso material de crimes, nos termos do artigo 69 do Código Penal.

A equiparação dos delitos permitiria a incidência da continuidade delitiva, com a aplicação da pena de somente um deles, já que possuem penas idênticas, aumentadas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).

A continuidade delitiva é uma ficção jurídica que beneficia o agente, segundo a qual vários delitos cometidos são entendidos como desdobramento do primeiro conforme o preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos. Não há, portanto, como permitir a continuidade delitiva entre o roubo e extorsão, porque, embora sejam delitos do mesmo gênero – crimes contra o patrimônio – não são da mesma espécie, elemento necessário para a aplicação do artigo 71 do Código Penal. E como delitos de espécies diferentes, que têm definição legal autônoma, assim devem ser punidos, atendendo-se aos anseios populares a um maior combate a violência e a impunidade.

 

DA REVOGAÇÃO DO § 3º, DO ARTIGO 158, DO CÓDIGO PENAL.

 

O projeto de lei em seu artigo 26 revoga diversos dispositivos, dente eles § 3º, do artigo 158, do Código Penal.

Primeiramente, cabe fazer as seguintes considerações: antes do advento da Lei 11.923/2009, como não existia tipo penal específico para a hipótese, o crime em questão era conhecido como “sequestro relâmpago” e havia várias interpretações sobre o seu enquadramento. O delito era tipificado ora no art. 157, § 2º, V, do CP (roubo agravado), ora no art. 159 do CP (extorsão mediante sequestro), ora no artigo 158 do CP (extorsão), esta última era a posição majoritária. O fundamento doutrinário levava em conta a distinção entre roubo, extorsão e extorsão mediante sequestro.

O legislador por meio da Lei 11.923/09 acrescentou o § 3º ao artigo 158, do CP, e pacificou o tema, transformando o “sequestro relâmpago” em figura qualificada do crime de extorsão. De acordo com a disposição “Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no artigo 159, § § 2º e 3º, respectivamente.”.

A providência mostrou-se um avanço e incremento à segurança jurídica, de modo que sua revogação seria um retrocesso legislativo.

Ademais, a parte final do artigo 158, § 3º, do Código Penal estabelece que se da prática do “sequestro relâmpago” resulta lesão grave ou morte, devem ser aplicadas as penas do crime de extorsão mediante sequestro qualificado por tais resultados (art. 159, § § 2º e 3º), fazendo com que a pena passe a ser consideravelmente maior, ou seja, 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos e 24 (vinte quatro) a 30 (trinta) anos, respectivamente. 

Assim, mesmo se considerado que aplicar-se-ão à extorsão as causas de aumento de pena previstas no artigo 157, §§ 1º a 3º, como estabelecido no projeto de lei, o agente do crime seria beneficiado, ante a revogação do artigo 158, § 3º, do Código Penal, sobretudo tendo em conta a parte final do referido dispositivo.

Ora, como já mencionado, a revogação traz insegurança jurídica, atenta contra o interesse público e vai na contramão de direção da própria justificativa apresentada, que destaca corresponder o projeto “ao anseio popular pelo endurecimento do sistema penal.”.

 

DO ERRO MATERIAL CONTIDO NO ARTIGO 13 DO PROJETO DE LEI:

 

Dispõe o artigo 13 do projeto de lei em questão que:

 

 “O § 3º do artigo 327 do Decreto-lei 2.848 (Código Penal), de 07 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação (...). (grifo nosso).

 

Ocorre que não existe o § 3º no artigo 327 do Código Penal, mas sim § 2º. Trata-se de erro de grafia que merece ser corrido para que conste do artigo 13 do projeto de lei que:

O § 2º do artigo 327 do Decreto-lei 2.848 (Código Penal), de 07 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação (...).

 

DA DESCRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA PREVISTA NA PRIMEIRA PARTE, DO ARTIGO 92, DA LEI Nº 8.666/1993:

 

O artigo 16 do projeto de lei tem a seguinte redação:

 

“Art. 16. O artigo 92 da Lei 8.666, de 12 de novembro de 1993, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 92. Pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei: (NR)

-------------------------------------------------------------”

 

Por outro lado, a legislação em vigor estabelece:

 

“Artigo 92.  Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei (...)”.

Pela simples leitura do dispositivo legal vigente, acima destacado, salta aos olhos que a redação dele constante é mais ampla, de modo a propugnar uma maior efetividade e abrangência do tipo penal, bem como repressão a imoralidade administrativa.

A descriminalização da conduta descrita na primeira parte do artigo 92 da Lei de Licitações atenta contra o princípio da moralidade administrativa, disposto no artigo 37 da CF, que, ademais, impõe um mandado de criminalização implícito ao legislador ordinário.

Com efeito, tendo em vista a importância de determinadas matérias e a necessidade de se impor um tratamento especial, mais eficiente, em relação a elas, o constituinte originário determinou que isso fosse feito por meio de lei, ou seja, o poder legislativo ficou incumbido de cumprir tais mandados constitucionais. A Constituição em relação aos mandados de criminalização implícitos não determinou expressamente o que deveria ser feito, mas salientou a importância de algumas matérias, como, por exemplo, a moralidade administrativa, e a necessidade de serem protegidas pelo legislador de forma adequada, e, dentro do possível, integral. Cuida-se de hipóteses de obrigatória intervenção do legislador penal.

A mitigação da conduta criminosa atenta contra esse mandado de criminalização, porque retroage, permite e aumenta a impunidade quando deveria fazer o contrário.

Aliás, essa ideia liga-se ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente positiva, qual seja a proibição da proteção insuficiente – “Untermassverbot”, que também se vê ofendido pela proposta em questão.

Pelo princípio da proibição de proteção insuficiente, expressão cunhada por Claus-Wilhelm Canaris, o Estado será omisso quando não adotar medidas suficientes para garantir a proteção dos direitos fundamentais.

Ora, com a descriminalização assinalada no projeto, o Estado deixará de proteger o direito fundamental a uma administração proba, sadia, com vista a atender ao interesse público, atuando de modo deficiente, insuficiente, ou seja, deixando de atuar e proteger um dos direitos assegurados pela Constituição.

Por outro lado, impende ressaltar que a justificativa apresentada com projeto de lei permite concluir que o mesmo vem a atender ao anseio popular de combate à violência, à corrupção e à impunidade.

Nesse contexto, verifica-se que a descriminalização da primeira parte da conduta, descrita no artigo 92, da Lei de Licitações, vai na direção oposta do pretendido pelo próprio projeto.

De se ressaltar que embora na justificativa do projeto conste que “o crime do delito de peculato mediante fraude, que absorverá (...) o crime de concessão de vantagem contratual indevida (artigo 92, primeira parte, da Lei 8.666/1993)”, a conduta descrita na lei vigente é diversa daquela tipificada no delito peculato mediante fraude.

O delito de peculato mediante fraude visa punir o funcionário que “embora não tendo a posse de dinheiro, valor ou bem, vem a obtê-lo ou a desviá-lo, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de cargo, emprego ou função, e mediante artifício, ardil ou qualquer meio fraudulento, inclusive fraude em licitação, sistema ou banco de dados informatizados, contrato ou sua execução”, de modo que a conduta para configurar-se exige a obtenção ou desvio da vantagem pecuniária ou bem.

Já a conduta típica descrito na primeira parte, do artigo 92, da Lei 8.666/93, não se vincula a qualquer obtenção de dinheiro, valor ou bem para a sua caracterização, abrangendo inúmeras formas de desvio de finalidade na realização da contratação, que não previstas na lei, no ato convocatório de licitação ou contrato.

Portanto, evidente a inconveniência da descriminalização, sobretudo porque o fim do disposto no artigo 92 é impedir a realização de quaisquer “negociatas” entre os participantes de certames licitatórios, sem autorização legal ou contratual, de modo a visar sempre o fomento do interesse público. O legislador puniu a conduta de favorecer o contratado durante a execução do contrato oriundo do procedimento licitatório, com vantagem não-prevista em lei, no ato convocatório ou no próprio contrato. Busca-se com o presente tipo penal, a manutenção da observância do princípio da legalidade, com obediência aos estritos termos do contrato, evitando-se qualquer desvio de finalidade.

Nesse passo é forçoso manter do texto legal original da Lei 8.666/93, sob pena de, uma vez realizadas as modificações propugnadas no presente projeto, ter-se claro retrocesso na sistemática legislativa relativamente ao tema.

 

 

DO 396, “CAPUT”, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL:

 

O artigo 22 do projeto de lei dispõe que:

 

“O artigo 396, caput, do Decreto-lei 3.689 (Código de Processo Penal), de 03 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art.396. Oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do denunciado ou querelado para, por escrito e no prazo de 10 (dez) dias, manifestar sua resposta à acusação, consistente em defesa prévia e eventuais exceções.

...........................................................”

 

Da leitura da nova redação do dispositivo, percebe-se que foi suprimida a determinação do recebimento da denúncia em tal ocasião processual, caso não seja hipótese de sua rejeição liminar.

A providência determinada só se mostra acertada se atrelada à aprovação da modificação do lapso interruptivo da prescrição para o momento do oferecimento da denúncia, como disposto no 5º do projeto em questão:

 

“O artigo 117 do Decreto-lei 2.848 (Código Penal), de 07 dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Causas interruptivas da prescrição

Art. 117.............................................................

I – pelo oferecimento da denúncia ou da queixa; (NR)”

 

Pois bem, se aprovada a modificação do disposto no artigo 396, “caput”, o recebimento da denúncia se prorrogará para momento processual posterior, qual seja, o previsto no artigo 399 do Código de Processo Penal, havendo entre o oferecimento e o recebimento da exordial acusatória, lapso processual significativo, haja vista que o rito processual impõe a realização da citação do acusado para responder à acusação, por escrito, e o fato dessa resposta ser de alegação ampla.

Caso o lapso prescricional não seja antecipado da data do recebimento da denúncia para a data de seu oferecimento, a prescrição poderá verificar-se, sobretudo ante a possibilidade de utilização de manobras defensivas quando da defesa preliminar com vistas a tanto.

Nesse contexto, a aprovação da reforma processual do artigo 396, “caput”, do CPP, somente será providência prudente se houver também a aprovação da modificação da interrupção do prazo prescricional para a data do oferecimento da denúncia.

 

DO PARÁGRAFO ÚNICO, DO ARTIGO 416, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL  -  IRRECORRIBILIDADE DA PRONÚNCIA:

 

Dispõe o artigo 23 do projeto de lei que:

 

“O artigo 416 do Decreto-lei 3.689 (Código de Processo Penal), de 03 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação:

Artigo 416..............................................................

Parágrafo único. A pronúncia é irrecorrível, de modo que, sem prejuízo do cabimento, quando for o caso, de habeas corpus, seus eventuais vícios, assim como os da instrução preliminar, devem ser arguidos no recurso cabível contra eventual e futura condenação”.

 

O dispositivo, cujo propósito alegado é o de agilizar o rito, trará maior lentidão aos procedimentos do Júri, à medida que reacenderá, em sede de apelação, o debate acerca dos vícios ocorridos em sede de pronúncia. Cita-se como exemplo, a hipótese de indevida exclusão de qualificadoras na fase processual mencionada. Se aprovado o texto proposto, o julgamento será realizado sem citada circunstância, que poderá ter sua pertinência reconhecida pelo tribunal, provocando, com isso, não apenas o novo julgamento, mas a necessidade de se reabrirem os atos processuais realizados desde a preclusão da pronúncia.

Assim, ao contrário do que justificado, verifica-se que a redação propugnada pelo projeto estabelece diretriz contrária ao disposto no artigo 5º, LXXVII, ou seja, o princípio da duração razoável do processo, que embora novo na Constituição como texto expresso, já vigorava desde 1992, por conta do Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, nº 5, art. 8º, nº 1). Ademais, mesmo antes de 1992, esse princípio já existia implícito no princípio do devido processo legal.

Ressalta-se que referido princípio é dirigido ao legislador, em primeiro lugar, posto que este deve cuidar de editar leis que acelerem e não atravanquem o andamento dos processos. Incumbe ao legislador na elaboração da lei avaliar todas as hipóteses que podem advir de eventual modificação de seu texto, a fim de evitar possíveis ocorrências de tumultos processuais, o que não se verificou na hipótese.

Desse modo, de rigor a manutenção da redação original do artigo 416 do Código de Processo Penal, sem o acréscimo do parágrafo único, de modo a assegurar a duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Face ao exposto, manifesto-me pela rejeição das propostas relativas ao artigo 158, §§ 2º e 3º, do Código Penal, artigo 92 da Lei 8.666/93 e parágrafo único, do artigo 416, do Código de Processo Penal; pela retificação do disposto no artigo 13 do projeto de lei e, por fim, pela aprovação da alteração da redação do artigo 396, “caput”, do Código de Processo Penal atrelada a modificação da redação do artigo 117, inciso I, do Código Penal.

São Paulo, 01 outubro de 2014.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

wpmj/bacrp