Jardim Ângela 'condena' Prefeitura


Fonte: O Estado de S.Paulo, por Adriana Carranca, em 25/2/08.


Em Tribunal Popular, moradores decidem ir à Justiça por falta de investimentos no bairro
Moradores do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, preparam uma ação civil pública contra a Prefeitura por negligência. O distrito tem 354 mil habitantes e nenhum equipamento público de, pelo menos, duas secretarias: de Cultura e do Trabalho. A decisão foi tomada após a realização, em outubro, de um Tribunal Popular, organizado pelo Fórum em Defesa da Vida, que reúne 250 movimentos sociais e representantes do Ministério Público, com a presença das secretarias municipais e de mais de 20 mil moradores. A ata do encontro, assinada simbolicamente por um juiz, dá à Prefeitura seis meses para iniciar investimentos nas duas áreas. O prazo vence em abril.

Por enquanto, tudo indica que terão mesmo de recorrer à Justiça. As duas secretarias confirmaram ao Estado, através de suas assessorias de imprensa, que não têm presença no bairro. A pasta da Cultura informou realizar atividades culturais em outros espaços, como o CEU, vinculado à Educação, e a do Trabalho disse ter planos de levar ao Jardim Ângela o Capacita Sampa - cursos profissionalizantes para jovens de baixa renda -, mas ainda em fase de licitação e sem previsão de início.

'Já se passaram quase cinco meses e nada. Nenhum contato foi feito com a comunidade após o tribunal. E o que dá para esperar de adolescentes e jovens se o Estado os abandona totalmente dessa maneira?', questiona o padre Jaime Crowe, mentor do Fórum, criado em 1995, quando o Jardim Ângela ainda era apontado como o mais violento do mundo, com 120 homicídios por 100 mil habitantes - a média mundial é de 10 assassinatos.

A Secretaria de Esportes, Lazer e Recreação também está na mira dos moradores, que pedem quadras e escolinhas esportivas. 'Andaram fazendo reparos nas poucas quadras que há no bairro. Mas isso é insuficiente', diz o padre.

Ele representará os moradores na ação civil pública contra a Prefeitura, através da Sociedade Santos Mártires, organização sem fins lucrativos que atua no bairro. Qualquer entidade formada há mais de um ano e que tenha em seu estatuto o objeto da ação, nesse caso a defesa dos direitos humanos ou da infância, pode entrar com a ação civil pública contra o poder público por negligência, segundo explica o promotor do Júri de Santo Amaro, Augusto Rossini, um dos idealizadores do Tribunal Popular.

Criado para permitir que a comunidade do Jardim Ângela discutisse com o poder público questões da violência no bairro, o Tribunal Popular funciona como se fosse um julgamento real do Tribunal do Júri. Um juiz preside a sessão e um promotor de Justiça atua como órgão de acusação. O governantes ou seus representantes atuam na defesa. Em discussão estão os problemas da comunidade, colocados pelos moradores em uma tribuna livre. Seus depoimentos são utilizados como produção de prova. Os primeiros a serem colocados no banco dos réus, em abril de 2002, foram a Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) e a Secretaria Municipal da Saúde, dois temas urgentes na época.

A comunidade reivindicava o aumento do policiamento na região e a construção de um hospital - o mais próximo, na ocasião, ficava a uma hora do ponto mais distante do bairro. O então secretário municipal da Saúde, Eduardo Jorge, e o coordenador dos Conselhos Estaduais de Segurança (Consegs), Pierre de Freitas, representando a SSP, apresentaram sua defesa. Houve réplica e tréplica. 'Condenadas', a pasta da Saúde se comprometeu a 'empreender esforços para a construção do hospital na região' e a SSP, a reforçar a segurança local. As promessas constam de Termo de Ajustamento de Conduta, aprovado pela maioria e homologado.

Como se trata de um tribunal informal, a 'sentença', é claro, poderia ser descumprida. Politicamente, no entanto, não é simples ignorar um colégio eleitoral do tamanho do Jardim Ângela. Pouco depois do Tribunal Popular, teve início a construção do Hospital M'Boi Mirim, que deve ser concluído este ano, e foram instalados no bairro um Batalhão da Polícia Militar, com 700 homens, e bases comunitárias.

'O que o Tribunal Popular faz é lançar luz sobre os problemas da comunidade e discutir soluções', diz o promotor Rossini. 'É uma importante ferramenta para qualificar o debate. Muitas pessoas nem sabem que têm um problema, desconhecem seus direitos. Por isso, é importante que a comunidade toda participe, possa se manifestar e, depois, ver suas demandas serem atendidas.'

Ação inédita levou CEU ao Capão

Os moradores do Jardim Ângela foram motivados a recorrer à Justiça por uma sentença inédita em outra ação civil pública - a primeira de que se tem notícia contra a Prefeitura por 'não cumprimento de suas obrigações' - movida em 2000 pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (Cdhep). O Cdhep entrou com a ação em nome dos moradores de cinco bairros da área do Capão Redondo, vizinho ao Jardim Ângela, depois de identificar a falta de programas socioeducativos para crianças e jovens da região.

O conteúdo da ação foi escrito com base em um dossiê elaborado pelos próprios moradores, inclusive crianças e adolescentes, mostrando a ausência de equipamentos públicos. Um abaixo-assinado com 2 mil assinaturas foi anexado ao processo. Em 2005, a Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro condenou a Prefeitura 'a implementar programa que ofereça às crianças e adolescentes residentes nos bairros de Parque Independência, Jardim Guarujá, Chácara Vila Clélia, Parque Rondon e Jardim São Bento atendimento, orientação e apoio sociofamiliar e comunitário e atividades esportivas, culturais e de profissionalização, no prazo de 180 dias (...)' sob pena de pagar multa diária de R$ 10 mil.

Meses depois, o governo municipal iniciou a construção do Centro Educacional Unificado (CEU) Feitiço da Vila, no Jardim Independência, inaugurado no ano passado para mais de 2 mil crianças. 'Foi uma vitória de todos e demonstra como moradores podem unir-se, organizar-se e conquistar melhorias para os seus bairros', diz Nelly Boonen, coordenadora do Cdhep, que desde então é convidada a apresentar a iniciativa em fóruns mundiais de direitos humanos.