Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo
Órgão Especial
Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 163.461-0/3-00
Requerente:
Prefeitura Municipal de Tietê
Requerida: Câmara
Municipal de Tietê
Parecer
Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei n. 2.943, de 10 de março de 2007, do
Município de Tietê: redução do valor de 50% das tarifas de abastecimento de
água e coleta de esgoto em favor de entidades filantrópicas declaradas de
utilidade pública. Iniciativa parlamentar. Inexistência de reserva de
iniciativa legislativa em matéria tributária. Contraprestação de serviço
público específico e divisível, de natureza industrial ou comercial, que não
tem caráter tributário e, conseqüentemente, não configura taxa. Invasão da
prerrogativa exclusiva de o poder público municipal fixar tarifas de serviço público
industrial ou comercial. Reserva de Administração ut art. 120 da Constituição Estadual: “Os serviços públicos serão
remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na
forma que a lei estabelecer”. Violação ao princípio da separação dos poderes
(arts. 5º, 47, II e XIV, 117, 119 , 120, 122, e 144, Constituição Estadual). Procedência
da ação.
Egrégio Tribunal,
Colendo Órgão
Especial:
1. Trata-se
de ação direta de inconstitucionalidade promovida em face da Lei n. 2.943, de
10 de março de 2007, do Município de Tietê, de iniciativa parlamentar, que
confere redução do valor, de 50% (cinqüenta por cento), das tarifas de
abastecimento de água e coleta de esgoto em favor de entidades filantrópicas
registradas nos órgãos da Administração Pública municipal portadoras do título
de utilidade pública. Alega-se contrariedade aos arts. 25, 37, 47, II e XIV,
144, 174, I a III, e 176, I, da Constituição Estadual, bem como aos arts. 61, §
1º, II, b, da Constituição Federal, e
ao art, 37-A, III e IV, da Lei Orgânica Municipal, e aos arts. 16, 17, 22 e 26,
da Lei de Responsabilidade Fiscal (fls. 02/11).
2. Liminar foi concedida sustando os
efeitos da lei porque, como consta da fundamentação da respeitável decisão, a
“norma apresenta vício de iniciativa, contrariando o princípio da harmonia e
independência entre os Poderes, e cria despesa sem a indicação da
correspondente fonte de receita” (fl. 95).
3. A douta Procuradoria-Geral do Estado
manifestou desinteresse no processo (fls. 112/114) e a Câmara Municipal de
Tietê defendeu a constitucionalidade da lei local impugnada (fls. 116/117).
4. É o relatório.
5. Preliminarmente, o parâmetro exclusivo
para a fiscalização abstrata de constitucionalidade de lei ou ato normativo
municipal é a Constituição Estadual, ainda que reproduza ou absorva,
obrigatoriamente, preceito da Constituição Federal, não servindo a tal
propósito contraste da lei local com
demais dispositivos da Constituição Federal, da Lei Orgânica do Município e da
Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 125, § 2º, Constituição Federal). Neste
sentido:
“as ações diretas de inconstitucionalidade devem
ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de
direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de
leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei
orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI
46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).
6. Dos arts. 25 e 29 da Constituição
Federal decorrem a supremacia da Constituição Estadual em relação a leis ou
atos normativos locais, abarcando todos os seus preceitos reproduzidos
(obrigatoriamente ou não), remissivos, imitados ou implícitos de observância
compulsória (princípios sensíveis e extensíveis; normas de preordenação
institucional; princípios constitucionais estabelecidos) da Constituição
Federal, ou, autonomamente estabelecidos (Léo Ferreira Leoncy. Controle de constitucionalidade estadual,
São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 82-94).
7. Não se empolga com a perspectiva de
violação da cláusula de separação dos poderes, preceito constante da
Constituição Federal reproduzido na Estadual (art. 5º) e aplicável aos
Municípios por força de seu art. 144.
8. Regra é a iniciativa legislativa
pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa
categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume.
Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa
legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado
(poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder
Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao
princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a
título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro
poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos
em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete,
criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do
princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes
à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
9. Fixadas estas
premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes,
entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser
interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do
processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus
membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir
matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação
ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração
do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional
explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ 27-04-2001).
10. O Supremo Tribunal Federal considera que
o preceito da Constituição Federal contido no art. 61, § 1º, II, b, não é de observância obrigatória nem
simetricamente extensível ao plano constitucional estadual:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 553/2000, DO ESTADO DO
AMAPÁ. DESCONTO NO PAGAMENTO ANTECIPADO DO IPVA E PARCELAMENTO DO VALOR DEVIDO.
BENEFÍCIOS TRIBUTÁRIOS. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. AUSÊNCIA DE VÍCIO
FORMAL. 1. Não ofende o art. 61, § 1º, II, b da Constituição Federal lei
oriunda de projeto elaborado na Assembléia Legislativa estadual que trate sobre
matéria tributária, uma vez que a aplicação deste dispositivo está circunscrita
às iniciativas privativas do Chefe do Poder Executivo Federal na órbita
exclusiva dos territórios federais. Precedentes: ADI nº 2.724, rel. Min. Gilmar
Mendes, DJ 02.04.04, ADI nº 2.304, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15.12.2000
e ADI nº 2.599-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 13.12.02
“III. Processo legislativo: matéria tributária: inexistência de reserva de
iniciativa do Executivo, sendo impertinente a invocação do art. 61, § 1º, II,
b, da Constituição, que diz respeito exclusivamente aos Territórios Federais”
(STF, ADI 3.205-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006,
v.u., DJ 17-11-2006, p. 41).
11. No rol do § 2º
do art. 24 da Constituição Estadual, que inscreve iniciativa legislativa
reservada ao Chefe do Poder Executivo, não se alinham disposições em matéria
tributária.
12. Tampouco dos arts.
13. Imprestável argumentar que a redução do valor da
contraprestação devida pelo usuário do serviço público terá reflexos
orçamentários e está compreendida na lei orçamentária e, por isso, a iniciativa
legislativa seria reservada ao Chefe do Poder Executivo. A resposta a esse
entendimento – que derruba a argüição de contrariedade aos arts. 174, I a III,
e 176, I, da Constituição Estadual - foi bem sintetizada na fundamentação de
acórdão da lavra do eminente Ministro Eros Grau:
“3. Afasto a alegação de vício formal. Isso
porque a Lei n. 8.366 não tem índole orçamentária. O texto normativo impugnado
dispõe sobre matéria de caráter tributário, isenções, matéria que, segundo
entendimento dessa Corte, é de iniciativa comum ou concorrente; não há, no
caso, iniciativa parlamentar reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tem-se por
superado, nesta Corte, o debate a propósito de vício de iniciativa referente à
matéria tributária. Nesse sentido, ADI n. 3.205, Relator o Ministro SEPÚLVEDA
PERTENCE, DJ de 17/11/06; ADI n. 2.659, Relator o Ministro NELSON JOBIM, DJ de
06/02/04, entre outros” (STF, ADI 3.809-5-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros
Grau, 14-06-2007, v.u., DJ 14-09-2007, p. 30).
14. Portanto, a reserva de iniciativa
legislativa contida no art. 24, § 2º, da Constituição Estadual, exige
interpretação restritiva, e de nenhuma de suas hipóteses taxativamente
previstas, se inclui a matéria objeto da lei local impugnada sob o prisma de
matéria tributária.
15. A argüição de ofensa ao art. 25 da
Constituição do Estado não se configura. Sua redação expressa que “nenhum
projeto de lei que a implique criação de cargo ou o aumento de despesa pública
será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis,
próprios para atender aos novos encargos”. O preceito concentra em seu bojo uma
nítida e salutar preocupação com a responsabilidade fiscal. Entretanto, a lei local impugnada não implica, de per si, majoração de despesa pública, ainda que importe renúncia
de previsão de receita pública. Mesmo sob este enfoque, convém ponderar que não
há óbice na medida em que incide sobre a previsão, não sobre a execução e
realização.
16. De qualquer sorte, não
há contraste com o teor do dispositivo enfocado e não serve ao debate o
eventual divórcio com a Lei Complementar n. 101/00 porque o controle de
constitucionalidade, nesta sede especial, tem como único parâmetro a Constituição do Estado.
17. Em suma, o art. 25 da Constituição
Estadual veda projetos de lei sem indicação de recursos próprios para fazer
face à majoração de despesa pública, não inviabilizando isenções ou reduções
tributárias.
18. Afastadas todas essas possibilidades,
denota-se a inconstitucionalidade da lei local impugnada por outros motivos. A
lei local impugnada instituiu redução da alíquota ou da base de cálculo
(desconto) de tarifa devida por certa categoria de pessoas em razão da
prestação de serviço público.
19. Não é dado estender o regime jurídico
tributário a serviço público remunerado por preço público (tarifa) e não por
taxa. A compulsoriedade da cobrança e a natureza do serviço público prestado
são impositivas da diferenciação jurídica entre taxa e tarifa. E nesse tema, o
tratamento dispensado pela Suprema Corte, é distinto, e afirma a
inconstitucionalidade de lei resultante de iniciativa parlamentar:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.304/02 DO ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO. EXCLUSÃO DAS MOTOCICLETAS DA RELAÇÃO DE VEÍCULOS SUJEITOS AO
PAGAMENTO DE PEDÁGIO. CONCESSÃO DE DESCONTO, AOS ESTUDANTES, DE CINQUENTA POR
CENTO SOBRE O VALOR DO PEDÁGIO. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. EQUILÍBRIO
ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS CONTRATROS CELEBRADOS PELA ADMINISTRAÇÃO. VIOLAÇÃO.
PRINCÍPIO DA HARMONIA ENTRE OS PODERES. AFRONTA.
20. Trata-se de reserva de ato da
Administração à luz do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, corroborado
pelos arts. 119 , 120 e 122, da Carta Polícia Paulista, todos aplicáveis aos
Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual. Aliás, nesse sentido
é expresso o art. 120:
“Art. 120. Os serviços públicos serão
remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na
forma que a lei estabelecer”.
21. Ora, se a Constituição Estadual reserva a
fixação da tarifa ao órgão executivo competente, não é dado, em atenção ao
princípio da simetria das formas, ao Poder Legislativo se imiscuir nessa seara
(estipulando reduções, isenções ou quaisquer outras espécies de benefícios aos
usuários), sob pena de comprometimento do equilíbrio econômico financeiro que
deve ostentar a remuneração do serviço público industrial ou comercial (art.
117, Constituição Estadual) e violação à cláusula da separação de poderes (art.
5º, Constituição Estadual) pela invasão da esfera reservada de ato da
Administração que lhe foi conferida para gestão do serviço público direta ou
indiretamente executado.
22. Opino pela procedência da ação para
declaração integral da inconstitucionalidade da Lei n. 2.943, de 10 de março de
2007, do Município de Tietê, por incompatibilidade vertical com os arts. 5º,
47, II e XIV, 117, 119 , 120, 122, e 144, da Constituição Estadual.
É
o parecer.
São
Paulo, 02 de dezembro de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no
exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça