Em artigo publicado nesta quarta-feira (26/4), no jornal “Valor Econômico”, o Procurador-Geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, apresentou os argumentos do MPSP contra o texto da lei do abuso de autoridade que está sendo discutido na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. De acordo com Smanio, “investigar, denunciar e julgar pressupõe independência. O policial, o promotor e o juiz devem formar suas convicções livremente”.
A seguir, a íntegra do artigo:
Contra o abuso ou abuso contra?
Muito se tem falado nos efeitos deletérios que o assim denominado projeto de lei contra o abuso de autoridade pode ter em relação à Operação Lava Jato, inibindo a atuação de integrantes da Polícia Federal, do Ministério Público e da magistratura no combate a um gigantesco esquema de corrupção que levou às cordas a Petrobrás. Pelo porte e pela relevância da empresa, a maior do país, toda a economia brasileira sofre os reflexos da crise que afeta a estatal, atualmente a petroleira mais endividada do mundo.
Mas as consequências do relatório que o senador Roberto Requião pretende ver aprovado na Comissão de Constituição e Justiça não se esgotam aí. Caso seja convertido em lei, o texto criará obstáculos praticamente intransponíveis para todos aqueles que têm o dever funcional de investigar, denunciar e condenar os autores de milhares de delitos que, somados, prejudicam enormemente a atividade econômica no Brasil.
Um exemplo? O transporte de cargas, cujo custo é pressionado em virtude dos investimentos que as empresas precisam fazer a fim de mitigar o risco de roubos. Compete ao Estado, por intermédio de seus agentes, reprimir a prática desse e de outros crimes. Isso exige preparo técnico e muita dedicação por parte daqueles que atuam no sistema de Justiça.
E é exatamente neste ponto que entra o projeto de lei contra o abuso de autoridade. Se for mantido nos termos do relatório do senador paranaense, o texto prestará um grande desserviço à sociedade, em nome de quem o Ministério Público exerce as suas prerrogativas.
O primeiro ponto que merece reparo é o parágrafo segundo do artigo 1º da proposta de Requião, que estabelece que a divergência de interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade.
Ora, o conceito do que venha a ser razoável na interpretação da lei ou na avaliação de provas é algo fluido o suficiente para fragilizar a posição de quem tem a responsabilidade de fazê-lo. A hermenêutica, ou seja, a interpretação da lei não deve de modo algum representar risco para os integrantes do sistema de Justiça, uma vez que isso pode resultar na inibição de sua atuação.
No limite, a defesa do investigado, denunciado ou sentenciado entenderá, sempre, que a interpretação do aparato legal e a avaliação das provas disponíveis utilizadas na persecução penal contra seu cliente não estão no âmbito do razoável. Em uma situação extrema, um caso que chegue ao STF, a mais alta corte do país, poderá ensejar a possibilidade de se alegar abuso de autoridade por parte daqueles que atuaram no exercício de suas funções contra a posição adotada no julgamento.
Investigar, denunciar e julgar pressupõe independência. O policial, o promotor e o juiz devem formar suas convicções livremente, sem que divergências na hermenêutica constituam uma verdadeira espada de Dâmocles sobre as suas cabeças.
Mas isso não é tudo. O projeto de lei contra abuso de autoridade, de maneira absolutamente despropositada, permite que as divergências de hermenêutica e todos os outros delitos descritos na proposta sejam objeto de ação penal privada por parte de quem se considerar ofendido.
É o que está escrito, com todas as letras, no artigo 3º do texto apresentado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Se prevalecer esse mecanismo, as organizações criminosas terão à sua disposição uma arma poderosa contra os agentes públicos. Toda e qualquer iniciativa de quem, em nome da sociedade, ousar tentar reprimir a prática de delitos poderá ser seguida de uma ação penal privada por abuso de autoridade. O agente público ficará com o ônus, ao cumprir sua tarefa, de providenciar a sua defesa nos tribunais.
Nem é preciso que seja condenado. A simples disputa judicial consumirá tempo e dinheiro de policiais, promotores e juízes, transformando quem tem a missão de evitar o descumprimento da lei em presa fácil de quem faz do desrespeito à norma legal o seu meio de vida.
Qualquer boletim de ocorrência será um risco para o policial, que poderá ter de constituir advogado a fim de se defender na Justiça contra a acusação de abuso de autoridade. Qualquer prisão em flagrante, mesmo que realizada com a observância de todos os preceitos legais, como deve ser, permitirá aos integrantes das organizações criminosas a proposição de uma ação penal privada a fim de desestabilizar o agente público, minando-o psicológica e financeiramente.
O aperfeiçoamento das instituições é sempre bem-vindo. No entanto, isso deve ocorrer de forma serena, sem atropelos, colocando-se o interesse nacional acima de quaisquer outros.
O Ministério Público de São Paulo, pelas razões apresentadas neste artigo, se opõe firmemente à proposta.
Sob o pretexto de atualizar a legislação contra o abuso de autoridade, o Senado Federal corre o risco de produzir um diploma legal que institui o abuso contra as autoridades. Isso fortalece as organizações criminosas e enfraquece a sociedade. Definitivamente, isso não é razoável!
GIANPAOLO SMANIO é procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, doutor pela PUC-SP e professor da Universidade Mackenzie